CORDISBURGO, MG (FOLHAPRESS) – Ao ser empossado na Academia Brasileira de Letras em 19 de novembro de 1967, três dias antes de morrer, João Guimarães Rosa lembrou Cordisburgo, sua terra natal, e a Gruta do Maquiné, localizada a apenas cinco quilômetros do centro da cidade.
“Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné”, discursou.
No sábado (21) e domingo (22), uma das mais famosas cavernas mineiras recebeu a visita de Augusto Matraga, “duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato”, nas palavras de Rosa, seu criador.
O personagem surgiu numa versão sucinta de “Matraga”, ópera composta por Rufo Herrera, compositor argentino radicado em Belo Horizonte, a partir do último e mais comentado conto de “Sagarana”, de 1946.
Ao menos no Brasil, não se tem notícia de apresentação de ópera dentro de uma caverna, nem mesmo em um formato adaptado, como foi o caso em Cordisburgo.
Matraga, jagunços, penitentes e outros personagens, além de instrumentistas e bailarinos, ocuparam seis dos sete amplos salões de Maquiné, percorrendo 650 metros gruta adentro, com a companhia de um público de, em média, 30 pessoas em cada sessão foram três apresentações no final de semana.
A longa jornada de Matraga depois de quase morrer tem alguma semelhança com a história da ópera que, enfim, pode ser vista pelo público. O libreto e a música criados por Herrera deram origem em 1985 a um espetáculo cênico-musical com proporções modestas àquela altura, não poderia ser considerado uma ópera.
Desde então, pouco se falou sobre esse libreto, que parecia destinado ao ostracismo. Há cerca de um ano, no entanto, a direção da Fundação Clóvis Salgado, de Belo Horizonte, decidiu montar a ópera para celebrar os 90 anos de Herrera. Logo, porém, surgiu um obstáculo.
“Foi difícil achar as partituras. Quando foram, enfim, encontradas, elas tinham algumas partes ilegíveis”, conta Ligia Amadio, regente da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG) e responsável pela direção musical da ópera. “Tivemos que contratar o maestro Marcelo Ramos e uma equipe, que refizeram boa parte do material para que pudéssemos executá-lo.”
O que a reportagem pôde acompanhar na Gruta do Maquiné não foi, a rigor, a estreia oficial de “Matraga”. Devido às regras de conservação da caverna, a produção optou por uma versão com cerca de 40 minutos, conduzida por poucos solistas, instrumentistas, coralistas e bailarinos.
A ópera em seu estado pleno, com duração de 90 minutos e as formações completas da OSMG, do Coral Lírico e da Companhia de Dança, estreou no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, nesta quarta (25) e terá mais três sessões: sexta, sábado e domingo.
Ainda assim, a encenação subterrânea foi capaz de reproduzir o sertão de Rosa e seus mistérios. As passagens no primeiro salão, logo na entrada da caverna, eram banhadas por luz solar, e o canto das maritacas em revoada conversava com os acordes de violinos e outros instrumentos, sob a batuta de Amadio.
Mais adiante, como no exuberante Salão das Fadas, onde cada passo depende de luz elétrica ou de lanternas, as sombras dos personagens refletidas nas estalactites desenhavam comentários visuais para a angústia e as inquietações de Matraga.
A utilização da caverna pelos artistas foi feita com a supervisão dos técnicos do Instituto Estadual de Florestas (IEF). “Não podíamos interagir na gruta da mesma maneira que fazemos no teatro. Havia muito cuidado, por exemplo, com o espaço em que estávamos pisando. Tudo isso fez com que a gente deixasse em cena apenas o que fosse realmente essencial”, diz a diretora cênica Rita Clemente.
Para Leonardo Fernandes, que vive Matraga, os espaços modulam a forma de interpretar. “Em Belo Horizonte, onde o teatro é grande e a orquestra está completa, é preciso amplificar o personagem ao máximo. Aqui na gruta, não, é como se fosse uma conversa para chegar ao espectador que está ao seu lado.”
Com duas décadas de carreira como ator, Fernandes assume pela primeira vez o desafio de dar vida à imaginação do autor de “Sagarana”.
Diferentemente das rotas indicadas ao longo das galerias da Gruta do Maquiné, com limites rigorosamente demarcados, tudo é mais difuso no universo de Guimarães Rosa, segundo o protagonista. “Não sei se o Matraga obteve a redenção, alguns acham que sim, outros que não. Esse é um dos aspectos geniais desse autor, que deixa os caminhos abertos.”
A proposta do Rufo Herrera é que todos os elementos –balé, coral, orquestra, atores– estejam ligados uns aos outros. Amalgamar tudo isso em uma ópera é muito bom, mas é um desafio complexo
diretora cênica de “Matraga”
MATRAGA
– Quando sexta (27) e sábado (28), às 20h30; domingo (29), às 19h
– Onde Grande Teatro Cemig Palácio das Artes – av. Afonso Pena, 1.537, Belo Horizonte
– Preço R$ 50 a R$ 60
– Elenco Leonardo Fernandes, Edineia Oliveira, Gilson de Barros, Chico Lobo, Edna d´Oliveira, Geilson Santos, Flávio Leite
– Produção Fundação Clóvis Salgado
– Direção Rita Clemente (direção cênica) e Ligia Amadio (direção musical)
– Libreto Rufo Herrera
*
O jornalista viajou a convite da Fundação Clóvis Salgado.
NAIEF HADDAD / Folhapress