SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Augusto Marcano, 44, descreve-se como um “papa canguro” –costumava levar o filho, hoje com 15 anos, para baixo e para cima. Mas há seis anos se viu forçado a tomar uma decisão que os manteria mais afastados: sair da venezuelana Caracas, sua terra natal, em busca de um lugar com mais oportunidades. A escolha foi Buenos Aires.
Com isso, Augusto saiu daquela que é hoje considerada a cidade latino-americana menos habitável, de acordo com um amplo estudo anual da Economist Intelligence Unit, braço de pesquisa do grupo britânico Economist, para aquela que é considerada a melhor da região.
Produtor audiovisual, ele sentia o impacto da crise econômica e social que aflorava no país em 2017, ano de massivos protestos.
Sua decisão de partir foi catalisada pelo dia em que assaltaram seu carro e roubaram todo o seu equipamento de trabalho. “A situação política foi minguando minha qualidade de vida. Chegou o momento em que tínhamos de voltar para casa às 18h para fugir da violência.”
Augusto viu a vida impactada diretamente pela falta de estabilidade em Caracas –justamente o pior indicador da cidade no levantamento da EIU, que também leva em consideração indicadores de infraestrutura, educação, sistema de saúde, cultura e ambiente.
A edição de 2023 é fruto de análises de bancos de dados e especialistas feitas ao longo de fevereiro e março deste ano. Foram consideradas 173 cidades de todo o mundo ao todo. A pedido da reportagem, a divisão de pesquisas do grupo Economist compartilhou os dados referentes às 19 cidades latino-americanas avaliadas neste índice, usualmente produzido e vendido a empresários e investidores.
Avaliar a nota média da região –67,2 numa escala de 0 a 100 na qual, quanto maior for a cifra, mais habitável é a cidade– depende do ponto de comparação. Comparada a outras regiões do mundo emergente ou subdesenvolvido, como o Oriente Médio e o Norte da África (61,4) e a África Subsaariana (53,8), a América Latina pontua bem.
Já com o restante, a pontuação está bem distante: Europa Ocidental (92,3); América do Norte (90,6), Ásia-Pacífico (73,5) e Europa Oriental (72,9). A média global, para efeito de comparação, é 76,2.
É a estabilidade o “calcanhar de Aquiles” da região. Para esse indicador, a EIU leva em conta fatores como a prevalência de pequenos delitos e crimes violentos, terrorismo, ameaça de conflitos militares e civis.
“A América Latina tem uma das pontuações de estabilidade mais baixas entre todas as regiões, e isso se deve, principalmente, a elevados níveis de criminalidade e aos desafios de segurança”, disse à Folha, por email, o quarteto de analistas da EIU Lakshay Bhatt, Barsali Bhattacharyya, Upasana Dutt e Rishabh Upadhyay.
Ainda que o índice não olhe diretamente para a desigualdade social, um problema crônico da região, o grupo diz que é possível entendê-lo como um fator de peso na balança.
“Elevados níveis de desigualdade podem muitas vezes trazer polarização e conflitos, o que pode levar a um aumento de pequenos crimes e de agitação civil –que são avaliados na nossa categoria de estabilidade.”
Direta ou indiretamente, dizem, esse aumento da insatisfação pública guiado pela baixa estabilidade parece ser um dos fatores que guia os fluxos migratórios frequentes da região, como o que compôs Augusto, membro da diáspora venezuelana na América do Sul.
A adaptação em Buenos Aires o sujeitou a um período de muitas mudanças –do trabalho em restaurantes, ele migrou para as aulas online de marketing e redes sociais durante a pandemia de Covid. Hoje, define-se como coach de desenvolvimento de marcas pessoais.
Mas o desafio também bateu à porta mesmo desta que é a cidade latino-americana mais habitável segundo os parâmetros da EIU –notadamente nas categorias de sistema de saúde, educação e infraestrutura, nas quais a capital argentina fica no topo do ranking.
“É como se estivesse tendo um ‘déjà-vu’ da era [de Hugo] Chávez na Venezuela, quando a inflação estava acima dos salários”, diz Augusto em referência à crise econômica na qual a Argentina está mergulhada. A inflação anual no país chegou a 124% em agosto. “Isso te impede de submergir socialmente, trava o desenvolvimento.”
“Há muita qualidade de vida no quesito cultural e na consciência cidadã dos moradores, mas penso em migrar novamente devido ao choque econômico”, diz ele. Suas opções agora estão bem distantes da vizinhança. Augusto cogita destinos como Estados Unidos, Canadá ou Portugal. “Onde haja alguma rede de proteção social para desenvolvermos nossas vidas.”
Hoje Buenos Aires enfrenta uma baixa competição entre as demais cidades latino-americanas. As únicas outras que, como ela, pontuam acima de 80 no ranking são a chilena Santiago (80,8) e a uruguaia Montevidéu (80,4). Mas a médio e longo prazo, ponderam os analistas da EIU, os impactos da crise econômica poderiam se desdobrar em uma queda no perfil habitável da cidade.
“Os desafios econômicos que elevam os preços dos alimentos e o desemprego podem levar a distúrbios sociais, o que afeta o indicador de estabilidade”, dizem. “Além disso, se isso se desdobra em um desafio fiscal, poderia limitar os gastos públicos em áreas como educação, saúde e infraestrutura, retraindo o desenvolvimento nessas áreas.”
O Brasil está representado no índice da EIU por três cidades: São Paulo (70), Rio de Janeiro (70,5) e Manaus (62,5).
MAYARA PAIXÃO / Folhapress