SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sobre as águas do rio Sena, ao lado da ponte Charles de Gaulle e próximo a cartões postais da capital francesa, como a estação ferroviária Gare de Lyon, o Jardim das Plantas de Paris e a Catedral de Notre-Dame, há uma embarcação denominada Adamant, onde funciona uma unidade de serviço psiquiátrico ligada ao Hospital de São Maurício.
Esse cenário idílico é o objeto retratado no mais recente documentário de Nicolas Philibert, cineasta de
Nancy, no oeste da França.
Após vencer o Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim, “No Adamant” compõe a programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Instituições têm sido tematizadas nas produções de Philibert pelo menos desde 1996. “La Moindre des Choses” faz uma incursão pela clínica psiquiátrica La Borde, enquanto “Être et Avoir”, de 2002, retrata uma escola rural francesa.
Não é surpresa que Philibert retrate agora o cotidiano do Adamant. O protagonismo não está em quem é atendido, mas na rotina da instituição, desde a sua abertura até a última atividade do dia.
Acompanhamos o despertar da embarcação, a disposição dos objetos e as atividades artísticas, desenvolvidas no ritmo lento e repetitivo da produção e da exposição comentada de desenhos e canções pelos atendidos. Emerge desse dia a dia um relativo tédio, observado na espera pela vez do outro e no diálogo compassivo dos funcionários do serviço psiquiátrico.
Essa é uma coletividade com muito a expressar diante de mundos não compartilhados, permeados por pensamentos e sentimentos enclausurados na solidão dos conflitos familiares e da severa medicalização. Os dramas dos atendidos no lugar se revelam entre o olhar assustado e o sorriso tímido pelo extraordinário da câmera.
A curiosidade com o cotidiano institucional, porém, limita o alcance que a riqueza das personagens propõe. Nas primeiras cenas, um dos atendidos nos sugere que muitos ali “são atores sem perceber”. É que seus corpos e vozes dão lugar a uma vida imaginada, forjada no encanto ingênuo com uma instituição que cultiva a arte e a singularidade.
Os indícios de que essa fantasia escamoteia um mundo de violência aparecem fartamente, mas são pouco explorados. “Não gosto desse olhar, me lembra o hospital”, diz um dos atendidos ao avaliar
a sua própria fotografia.
“Talvez tenhamos rostos levemente quebrados. As pessoas nos olham com curiosidade”, diz outro paciente, enquanto fecha os braços em torno do próprio corpo. “Eu perdi minha liberdade. Não posso fazer o que quero, não tenho permissão”, diz uma mulher, com o olhar distante.
Nessas passagens e nos silêncios que as costuram, reside a crítica lúcida dos pacientes psiquiátricos à sua própria condição institucional.
Se o Adamant é vivido e representado como um respiro de autonomia e liberdade criativa, panaceia de um tratamento humanizado, sua conformação física como uma navegação flutuante é metáfora do seu papel e da sua atuação na vida dos personagens –uma frágil fuga do mundo lá fora.
Desse mundo, o documentário também tenta fugir, exaltando o que há de melhor sobre as águas do Sena. É um alívio encontrar boas e belas histórias. Só não se pode ignorar o que elas escondem.
NO ADAMANT
Quando: Dia 31, às 19h30, no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca
Classificação: 14 anos
Produção: França e Japão, 2023
Direção: Nicolas Philibert
Avaliação: Muito bom
Redação / Folhapress