SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Todo ano, o católico Instituto HeSed, de digitais conservadoras, faz o mesmo alerta: o Halloween é um mal que ameaça corromper nossas famílias e precisa ser combatido. O deste ano ficou a cargo do irmão Luís Maria, membro do grupo fundado em 1997 por duas madres cearenses. “Triste mesmo são os cristãos que não levam a sério os avisos de Deus.”
Ele fala na sequência sobre uma escola no Nordeste onde professores teriam organizado uma sessão de fotos com velas vermelhas e pretas, cruz de cabeça para baixo e pentagrama, todos símbolos associados ao satanismo. “Papais, mamães, ajudem a abrir os olhos de outras pessoas. Não tenham medo de ser ridicularizados.”
Não está numa cruzada solitária. As festas que todo 31 de outubro tiram fantasias de esqueleto do armário têm irritado lideranças católicas e evangélicas, e não é difícil entender por quê. O Dia das Bruxas, outro nome no Brasil para a celebração consagrada na cultura estadunidense e que vem se popularizando em outros cantos do mundo, é puro suco de paganismo na visão de setores mais reativos do cristianismo.
Nos últimos anos, o HeSed pegou carona na data para publicar vídeos como “Seus Filhos Correm Perigo” e “Um Dia de Luta Contra o Mal”. Em 2016, apontou que o festejo acontece na véspera do Dia de Todos os Santos (All Hallow’s Eve em inglês, daí o nome Halloween), que por sua vez antecede o Dia dos Finados, ambos integrados ao calendário católico.
Sugeriu então uma alternativa: por que não, em vez de “impor nos filhos os costumes dos condenados ao inferno”, estimular crianças e jovens a se fantasiarem de santos?
Até o Vaticano, à época sob guarda do papa Bento 16, já se manifestou contra comemorações na época. A mensagem, veiculada no L’Osservatore Romano, jornal oficial da Igreja Católica, citou um padre para quem a farra “tem um pano de fundo de ocultismo e é absolutamente anticristã”. Um novo texto, de 2021, já sob o papado de Francisco, refere-se ao “desafio do Halloween”.
O padre Paulo Ricardo, uma das vozes mais à direita no catolicismo nacional, endossa a antipatia à data. “Permitir que as crianças se disfarcem de bruxos, monstros e demônios é, sem sombra de dúvida, um grande erro por parte de pais e educadores”, escreveu sobre o tema.
A birra evangélica pode ser até maior, até porque essa parcela cristã não venera santos, então o Dia de Todos os Santos nada significa para ela.
A Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, já divulgou em seu site um artigo reparando que “muitas pessoas podem dizer que o Halloween e outras festas pagãs já perderam o caráter religioso, tornando-se apenas datas festivas e comerciais, e que, por isso, não há problema algum em participar dessas tradições”. Não é bem assim. “Pensar dessa maneira é um engano e é por isso que os espíritos malignos ainda encontram espaço para a atuar na sociedade.”
A recomendação para manter distância do Halloween também partiu de Silas Malafaia. Em 2015, o pastor afirmou que mesmo se reunir com amigos no dia para ver um filme de terror era uma má ideia. Lançou mão de uma teoria da conspiração: “Na preparação da maioria desses filmes são contratados satanistas a fim de ajudar a reproduzir rituais, sacrifícios e maldições de forma autêntica”.
O pastor Pedrão, da Comunidade Batista do Rio, diz que, do ponto de vista teológico, “[o apóstolo] Paulo faz uma recomendação em Romanos 12:2 para que a igreja não tome a forma do mundo, e aí reside as preocupações dos evangélicos”. Haveria, portanto, resistência em ceder a práticas mundanas, como se não fosse nada demais sair por aí com máscara de monstro só porque isso virou algo banal, uma brincadeira entre amigos.
Ele, contudo, tem uma posição mais flexível sobre o assunto. “Para mim, o Halloween pode ser celebrado como uma simples festa à fantasia.”
A repulsa à data extrapola igrejas e invade a seara pública. Neste ano, o chefe do Executivo de Pontes e Lacerda (MT) vetou comemorações do Dia Das Bruxas em escolas municipais da cidade. “Enquanto eu for prefeito, esse tipo de bagunça não vai ter. Tá proibido, tá bom? Não vai ter essa festa. Se alguém comunicou aí, cancela. Se alguém comprou fantasia, infelizmente não vai poder entrar”, disse Alcino Barcelos, do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal.
Ele também argumentou que a festa “não faz parte da nossa cultura brasileira”, e aí entra um ponto de interseção com grupos à esquerda que rechaçam o Halloween por motivos que nada têm a ver com componentes religiosos.
A data é vista por fatias progressistas como importação de um costume típico dos EUA. Preferem falar em Dia do Saci, também celebrado nesta terça (31), a partir de um projeto de lei que selecionou a data para servir de contraponto à festa que ganhou o mundo com ajuda de produções hollywoodianas.
Não que seja um consenso progressista rejeitar o Dia das Bruxas. A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, por exemplo, apareceu recentemente numa festa dessas vestida de Wandinha, a filha da Família Adams.
O DNA do Halloween não é americano. Sua origem remonta ao celtas, bem antes do cristianismo dominar boa parte do planeta. Era como se fosse o Revéillon desse povo adepto do politeísmo, com crenças enraizadas em elementos da natureza.
Tânia Gori, presidente da Associação Brasileira de Bruxaria, vê intolerância nas críticas à data que, com o tempo, foi ganhando outros formatos –do alinhamento ao Dia de Todos os Santos à recreativa tradição de se fantasiar com trajes monstruosos. E não entende a alegação de que ela não faria parte do folclore nacional. “Não consigo compreender por que existe tanto preconceito com o Halloween. Até parece que a celebração do Natal é de origem nacional.”
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress