SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A caminho de um ensaio, Jade Silvério foi interrompida por um senhor branco que lhe perguntou se o instrumento em suas mãos era um cavaquinho. “Eu falei que era um violino, e ele disse que era perda de tempo. Que eu precisava tocar uma coisa mais a ver com a minha cor, como um pandeiro”, conta.
Aos 23 anos, Jade é a primeira estudante preta da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) a concluir o curso de música com ênfase em violino de que se tem registro. Ela ingressou no curso via ampla concorrência em 2017, dois anos antes de a instituição aderir às cotas.
Ao perceber que era a única no ambiente, Silvério pesquisou nos arquivos da universidade sobre a existência de uma veterana negra, mas não encontrou. Em setembro, a Unicamp chegou a fazer um vídeo sobre o pioneirismo da estudante.
Ela, que conheceu a música incentivada pelo pai e começou a aprender violino aos seis anos, em um conservatório em São José do Rio Pardo (SP), agora considera fazer mestrado e defende que crianças e adolescentes negros precisam saber que têm direito a educação, cultura e arte.
“Eles podem acessar a academia e a educação por meio das artes visuais, da dança, do teatro e da música. Nós [pessoas negras] temos direito ao belo, ao amor, ao conhecimento, à elegância –tudo isso também é nosso.”
Histórias como a de Silvério têm se tornado mais frequentes em anos recentes, com o aumento da presença de estudantes que pretos e pardos nas universidades brasileiras, mas dados do livro “Números da Discriminação Racial” apontam que a desigualdade entre negros e brancos matriculados parou de cair e chegou a ter um leve aumento em 2021.
Após praticamente duas décadas de avanços seguidos, o número de jovens negros com idades entre 19 e 24 anos matriculados no ensino superior teve uma queda de 2020 para 2021 (de 16,75% para 16,05%), enquanto a taxa de alunos brancos aumentou de 29,3% para 30,5% no período.
Já para o ensino fundamental, o “fosso” entre negros e brancos foi se fechando em 40 anos, com o número de estudantes negros e brancos matriculados de 8 a 14 anos em 2021 empatados em 97,6% –há quatro décadas, era de 71,3% para negros e 83,5% para brancos.
Os dados consideram o total de pessoas que estavam matriculadas naquele ano em cada ciclo. A compilação é feita a partir da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), pesquisa que investiga, entre outras coisas, se os moradores da casa frequentam a escola, sua idade e o nível escolar em que se encontram.
O calculo é feito a partir da chamada taxa líquida de matrículas, que se refere às pessoas matriculadas com idades correspondentes a um determinado ciclo (neste caso, de 8 a 14 anos para o fundamental, 15 a 18 para o médio e 19 a 24 para o superior).
Os números são resultado de um estudo dos pesquisadores Michael França (também colunista do jornal) e Alysson Portella, que lançaram na última semana o livro “Números da Discriminação Racial”.
A redução da desigualdade nas matrículas de negros e brancos na educação superior é considerada importante, pelos reflexos que mais anos de formação tendem a ter no desempenho desses jovens no mercado de trabalho.
Outros dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) também citados pelos pesquisadores do Insper apontam que os declarados negros são maioria entre 20% dos trabalhadores que ganham os menores salários, representando 69% dessa parcela, enquanto brancos são 30%.
O oposto se observa entre os 20% que recebem os maiores salários: 64% são brancos e 34% são negros. Entre os que ocupam cargos gerenciais, negros são 29%, ante 69% de brancos.
França, que é coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, lembra que os reflexos da pandemia e das crises econômicas que o país enfrentou nos últimos anos afetaram principalmente a população mais pobre e, majoritariamente, negra.
“Essa população tem menos segurança no mercado de trabalho e menos patrimônio disponível. Em uma crise, o jovem que estava se preparando para o vestibular acaba desistindo e precisando trabalhar. Uma crise nunca é racialmente neutra.”
França ressalta que a lei de cotas para o ensino superior, que tem pouco mais de uma década, foi um avanço, mas a entrada desses jovens nas universidades públicas é apenas parte da equação.
“Ainda que tenha conseguido passar no vestibular, por meio de cotas ou não, a preocupação em se manter durante a faculdade pode pesar na decisão de começar e terminar o curso”, diz.
Portella avalia que a redução mais bem-sucedida do ‘gap’ entre negros e brancos no ensino básico pode ter sido estimulada pela redução da repetência, que aumentava a desistência nos primeiros anos, e por políticas de renda básica, como o Bolsa Família, atreladas à matrícula escolar.
“No caso do ensino superior, a política de cotas foi importante para melhorar o acesso ao ensino público. No ensino privado, o número de matrículas disparou a partir da década de 1990, mas ainda era inacessível para a população de menor renda”, diz ele.
Ainda assim, observa o pesquisador, é preciso reconhecer que a velocidade com que a população negra vem aumentando sua participação no ensino superior é maior, sobretudo a partir dos anos 2000.
A série histórica que começa em 1982 mostra que a matrícula dos estudantes negros aumentou dez vezes em 40 anos, ante quatro vezes dos brancos.
Para Edivaldo Constantino, da JOI Brasil (Iniciativa de Empregos e Oportunidades Brasil), dados como esses ajudam na formulação de políticas públicas.
“É sempre difícil fazer projeções, mas a desigualdade educacional tem reflexos no trabalho, e o Brasil ainda tem o duplo desafio de formar para os empregos do futuro e incluir parte da população.”
Ele acrescenta que, apesar de a educação não ser o único componente a considerar para medir a desigualdade, ela é um fator muito importante. “Qualquer país que conseguiu ser bem-sucedido, apostou na educação. É uma lição que o Brasil deveria entender e aplicar.”
DOUGLAS GAVRAS E PAOLA FERREIRA ROSA / Folhapress