Abilio procura um desconhecido para deixar sua empresa, mas não encontra

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O telefone de Abílio Lissaraça Pedrosa, 70, toca de vez em quando. Ele atende com expectativa e estica a conversa para sentir a disposição do interlocutor em trabalhar. O resultado tem sido decepcionante.

“A gurizada não quer aprender”, constata.

Existe na voz a frustração de quem é apaixonado pelo ofício e não deseja vê-lo morrer. Dono da Relikia Botas em Tramandaí, litoral do Rio Grande do Sul, ele faz botas gaúchas artesanais. A tarefa é 100% manual.

Pedrosa possui tamanho desejo de manter vivo aquilo que considera como arte que aceita passar a empresa para outra pessoa. Pode ser um desconhecido. A única condição é ele sentir, de verdade, o desejo de continuar com algo iniciado pelo sapateiro há 50 anos. Não pode ser coisa momentânea, para depois desistir. Nem ter apenas o pensamento no lucro.

“As pessoas que me procuraram agora vieram em busca de um emprego. Desejam apenas o salário. E não é isso. Não estou em busca de um funcionário”, tenta explicar.

Pedrosa consegue produzir, em média, uma bota por dia. Se o par de peças exigir muitos detalhes, pode levar mais do que isso. Diz ser raro alguém ter o método de trabalho dele, todo artesanal, desde o corte do couro até o acabamento final. Nada é industrializado na produção do calçado. Isso o faz perder o sono com a possibilidade do seu trabalho morrer com ele.

“Sou apaixonado pela profissão. E não paro. Costumo dizer para as pessoas aqui que ninguém da minha idade trabalha tantas horas quanto eu trabalho. Gosto demais disso que faço e a cada dia quero fazer melhor. A minha clientela me realiza”, afirma.

A rotina é de 10 horas de labuta por dia. Das 7h30 às 17h30. Entre segunda e quinta, em um galpão que tem em Novo Hamburgo. Sexta, sábado e domingo na loja da sua mulher, Fernanda, em Tramandaí. É onde mais se sente realizado porque os clientes ou interessados podem vê-lo com a mão na massa, fazendo os calçados.

O trabalho o distrai, confessa. Não permite que pense em outras coisas, absorve seu tempo. Quando termina uma bota, a observa demoradamente. Acredita ser para ver se há algo de errado, mas existe o componente de orgulho.

“Não conheço mais ninguém que faça o que eu faço. Agora eu preciso de alguém que tenha um pouco de conhecimento e queira aprender.

Ele poderia deixar o negócio para o filho de 37 anos, mas Pedroso não quer falar muito sobre esse assunto. Está afastado do primogênito, que trabalha com construção civil. Diz que está distante também do restante de sua família.

“A gente não consegue se acertar e este foi um dos motivos para ele não ficar do meu lado. Na minha família, sou meio sozinho mesmo. Me separei dela há uns 12 ou 13 anos”, limita-se a dizer.

A lembrança na juventude é de fartura. Seu pai era dono de 2.864 hectares de terra (o equivalente a 28,6 quilômetros quadrados), diz ele. O hoje sapateiro alega que a família foi enganada em sucessivas negociações e perdeu boa parte da fortuna. Pedroso se mudou para Santo Ângelo (435 km de Porto Alegre), onde ele arrumou emprego em uma sapataria. Não parou mais.

A partir de 1975, há 48 anos, começou a fazer botas sob medida. Comprava o couro, o cortava, montava o calçado e ia vender em outras cidades do interior. Ao mostrá-la para um concorrente, ouviu uma crítica: o preço era baixo demais.

“Tu aprendeste a fazer. Agora precisas aprender a cobrar”, foi o conselho.

As botas da Relikia custam, hoje em dia, entre R$ 1.500 e R$ 1.750. Há exceção para o modelo chamado fole de gaita. Leva mais tempo para ser feita e é vendido por R$ 2.500.

“Quando comecei, havia muitos boteiros no Rio Grande do Sul. Em Bagé, no Alegrete… Eu vendia também couro para toda essa gente. Mas todo mundo parou. Só restou eu”, lembra.

É isso o que ele não quer ver acontecer. Pedroso não tem nenhum desejo de se aposentar e planeja costurar e vender suas botas até morrer. O problema será depois. Após ouvir alguns interessados em trabalhar ao seu lado e herdar a Relikia, decepcionou-se. Reconhece que a possibilidade de não passar seu conhecimento para alguém é real.

“Sim, me preocupa um pouco. Mas o que eu posso fazer?”

ALEX SABINO / Folhapress

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