‘O Dybuk’, clássico judaico, ganha leitura que celebra 60 anos de montagem histórica

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – É com um largo sorriso no rosto e a empolgação de uma estreante que Hugueta Sendacz, de 97 anos, recebe o repórter em seu apartamento na capital paulista para falar do próximo projeto de uma carreira que abraça a arte em suas mais diversas expressões.

Nesta terça-feira, a atriz, maestrina, pianista, bailarina, figurinista e tradutora participa de uma leitura da peça “O Dybuk”, do russo Sch. An-Ski, considerada uma das obras mais importantes do século 20 e texto basilar da cultura judaica. Idealizado pelo ator e diretor Sylvio Band, amigo de longa data, o evento é uma celebração dos 60 anos da principal montagem vista no Brasil.

Em abril de 1963, Sendacz criou os figurinos e a música para o espetáculo, enquanto Band interpretou um de seus protagonistas. Agora, eles retornam ao texto em outros papéis –ela fará a leitura de dois personagens, incluindo um masculino, e ele, além de dirigir, será um rabino responsável por um exorcismo.

É que “O Dybuk” se inspira na figura homônima que, no folclore judeu do século 16, entrava no corpo de pessoas para gerar transtornos pessoais e tragédias em escala maior. Eram como espíritos malignos, almas penadas condenadas a vagar pela Terra por não terem encontrado seu lugar tanto em vida, quanto em morte.

“Em 1963, um grupo de pessoas ligadas à Casa do Povo decidiu montar a peça, num ato de ousadia e atrevimento. Grandes diretores do Brasil, como Ziembinski, Adolfo Celi, Antunes Filho, tentaram montar e não conseguiram, por causa da escala do projeto”, lembra Band.

“Na época, a Casa do Povo tinha o grupo de teatro amador mais importante de São Paulo. Nós nos unimos com um grupo amador da Caixa Econômica Federal, que era bom e tinha dinheiro, e conseguimos montar e contratar o Graça Mello como diretor.”

Foram, porém, apenas 16 apresentações, porque a atriz principal teve hepatite e ninguém pôde ocupar o seu lugar. Mas o tamanho da empreitada aproximou o grupo, que com frequência se reunia, nas décadas seguintes, e flertava com a ideia de remontar a peça.

Descrita por muitos, de forma um tanto simplista, como um “Romeu e Julieta” judaico, “O Dybuk” narra o romance impossível entre dois jovens. A noiva, possuída por uma dessas entidades, vê sua história de amor desandar, o que os obriga a deixar a união para o além-vida.

Na época, este jornal não só noticiou a estreia, como também publicou, nos dias seguintes, textos como um manual que explicava conceitos da cultura judaica para quem fosse assistir à montagem. “O espetáculo de ontem foi muito aplaudido por numerosa plateia e não deu mostras de cansar o público, não obstante suas três horas de duração”, noticiava o jornal numa dessas edições.

Marcada para a noite desta terça, na Casa do Povo, instituição cultural no bairro do Bom Retiro que teve os pais de Sendacz como alguns de seus fundadores e que recebeu, em 1963, a montagem original de “O Dybuk”, a leitura terá em seu elenco, ainda, nomes como Dan Stulbach e Miriam Mehler.

Todos trabalham de graça, por idealismo e por um senso de comunidade, que, Band e Sendacz contam, historicamente move a produção artística das comunidades judaicas que se fixaram no Brasil.

“Um dos meus grandes projetos de vida, antes de morrer, é remontar ‘O Dybuk’”, diz o ator-diretor sobre a ideia original. “Não dá para montar agora na totalidade. Existia um aceno do Danilo Miranda [diretor do Sesc em São Paulo, morto na semana passada], de que no ano que vem ele liberaria a verba. Mas para não deixar passar em branco os 60 anos, decidimos fazer a leitura.”

Mesmo com a morte do mecenas cultural, Band segue firme no objetivo de remontar a peça, e Sendacz deixa claro que a idade não será impeditivo para que ela participe, não importa quanto tempo o projeto demore para se materializar.

Ela segue cheia de energia, afinal, e, em meio aos ensaios de agora, encontrou tempo, ainda, para preparar um novo espetáculo do Coral Tradição, da Casa do Povo, que ela rege, e para ser gravada para um filme musical da israelense Yael Bartana, com a participação do Instituto Inhotim.

“A gente vai fazendo as coisas conforme elas vão aparecendo. E com ‘O Dybuk’ eu fiquei muito feliz, porque era um velho sonho nosso voltar a ele, é um texto muito importante”, diz Sendacz, que desde pequena esteve imersa no ambiente cultural –a mãe era cantora lírica, o pai tinha um comércio, mas cuidava, por paixão, da biblioteca da Casa do Povo.

Nascida na Polônia, Sendacz cresceu no Brasil, depois que os pais fugiram do antissemitismo em alta na Europa. Entre goles de chá, ela serve anedotas sobre a infância, a paixão pela música e outros trabalhos, como o filme “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”.

No campo da literatura, foi aprendiz de ninguém menos que Mário de Andrade e mostra empolgada um poema que o escritor dedicou a ela, escrito a próprio punho, num livro. A regência, apesar de exercida desde muito antes, ganhou ares mais profissionais depois que ela ingressou num curso profissionalizante aos 70 anos de idade.

“Eu sou uma criatura muito privilegiada, em todos os sentidos. E ainda por cima com a saúde em dia”, diz ela, enfileirando nomes, datas e passagens de sua vida sem grande esforço.

“O Dybuk” é o primeiro ato do projeto Garimpeiros do Teatro, que Sylvio Band criou para pesquisar montagens icônicas dos palcos brasileiros que acabaram esquecidas. A ideia é recuperar os textos e realizar leituras, como a que acontece nesta semana. Pelo valor histórico inerente, o fotógrafo Bob Wolfenson vai gravar a apresentação, que tem entrada gratuita.

O DYBUK – ENTRE DOIS MUNDOS: LENDA DRAMÁTICA EM 4 ATOS

Quando Ter. (7), às 19h

Onde Casa do Povo – r. Três Rio, 252, São Paulo

Preço Grátis

Classificação Livre

Autoria Sch. An-Ski

Elenco Hugueta Sendacz, Dan Stulbach e Miriam Mehler

Direção Sylvio Band

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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