LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – O primeiro-ministro de Portugal, António Costa (Partido Socialista), renunciou ao cargo nesta terça-feira (7). O anúncio foi feito em pronunciamento nacional, horas após uma megaoperação que investiga irregularidades em negócios ligados à transição energética atingir o núcleo de seu governo.
Embora tenha negado “a prática de qualquer ato ilícito ou censurável”, Costa afirmou que sua continuidade é incompatível com o cargo. “A dignidade das funções de primeiro-ministro não é compatível com qualquer suspeição da sua boa conduta e menos ainda com a suspeita de qualquer ato criminoso.”
Em entrevista coletiva, Costa afirmou que os próximos passos serão anunciados pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que já aceitou formalmente a renúncia.
Pela lei portuguesa, é o chefe de Estado quem tem a prerrogativa de convocar eleições antecipadas e de dissolver o Parlamento em casos considerados graves. Rebelo agendou reuniões com líderes partidários e um encontro extraordinário do Conselho de Estado e deve fazer um pronunciamento à nação na próxima quinta-feira (9).
Devido aos prazos legais e ao recesso de fim de ano, eventuais eleições antecipadas só devem acontecer a partir de janeiro. Costa, contudo, deve permanecer no cargo até seu sucessor seja escolhido.
Na manhã desta terça-feira, um efetivo de mais de 140 agentes, incluindo policiais e membros do Ministério Público, realizou uma série de buscas em endereços dos suspeitos, incluindo a residência oficial do premiê no Palácio de São Bento, em Lisboa.
No centro das investigações estão negócios relacionados ao lítio e ao chamado hidrogênio verde, dois componentes importantes para os projetos de transição energética da União Europeia. As primeiras informações sobre suspeitas de irregularidade remontam a 2019.
As investigações sobre o lítio estão relacionadas à concessão e à extração do minério fundamental para baterias de carros elétricos no município de Montalegre. Em relação ao hidrogênio, as suspeitas se concentram sobre a atuação do governo um grande projeto a ser realizado em Sines.
Duas figuras muito próximas ao primeiro-ministro foram detidas na operação: seu chefe de gabinete, Vítor Escária, e o consultor Diogo Lacerda Machado, amigo pessoal de Costa.
Além deles, foram presos também o também socialista Nuno Mascarenhas, presidente da Câmara Municipal de Sines (cargo equivalente ao de prefeito), e dois empresários. O porto de Sines é a principal porta de saída das exportações portuguesas.
A Procuradoria-Geral da República justificou as detenções alegando “perigos de fuga, de continuação de atividade criminosa, de perturbação do inquérito e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas”. Segundo a PGR, os detidos são suspeitos de “prevaricação, de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência”.
Sobre a situação do premiê, o Ministério Público esclarece que o nome de António Costa foi invocado por suspeitos durante as investigações, que teriam mencionado “sua intervenção para desbloquear procedimentos” no contexto das investigações.
Também alvo de buscas em sua casa, o ministro das Infraestruturas, João Galamba, foi formalmente declarado investigado no caso. O ministro do Meio Ambiente, Duarte Cordeiro, e o ex-titular da pasta João Matos Fernandes também são investigados.
A chamada energia verde é uma das apostas da União Europeia na transição para fontes menos poluentes. Portugal tem a maior reserva de lítio do bloco europeu a oitava maior do mundo. Mas a exploração do minério, cada vez mais valorizado devido à popularização de carros elétricos, não é consensual no país. Moradores, sobretudo das regiões onde há concentração de lítio, fazem reiterados alertas sobre as consequências ambientais e sociais negativas da mineração.
Já o hidrogênio verde, pensado como um substituto do gás natural e produzido com eletricidade de fontes renováveis, é outra aposta lusa para a transição energética. Portugal chegou a se unir à Espanha em um megaprojeto ibérico para converter seus gasodutos à circulação do hidrogênio. A produção comercial de larga escala a preços competitivos, no entanto, ainda é realidade distante.
A operação policial e a renúncia de Costa provocaram um terremoto político no país. A maior parte dos partidos políticos já defendeu abertamente a realização de novas eleições. O maior partido da oposição, o PSD (centro-direita), não havia se manifestado até a publicação desta reportagem. A liderança da sigla convocou uma reunião de emergência e informou que só irá se pronunciar após o encontro.
Líder do partido de ultradireita Chega, que tem a terceira maior bancada de deputados, André Ventura saudou a demissão do primeiro-ministro e afirmou que a única solução para o impasse político é a dissolução do Parlamento. “As eleições devem ser marcadas o mais depressa possível, porque qualquer outra resolução atrasará o processo político do país”, disse. As últimas pesquisas de intenção de voto mostram que o Chega pode se beneficiar com a antecipação das eleições.
António Costa é primeiro-ministro de Portugal desde novembro de 2015, quando conseguiu chegar ao poder graças a uma inédita aliança entre partidos de esquerda, historicamente divididos. Apesar da aparente fragilidade do arranjo, pejorativamente apelidado de geringonça, o grupo conseguiu completar a legislatura.
Reeleito em 2019, António Costa teve de enfrentar eleições antecipadas depois de não conseguir aprovar o Orçamento de Estado de 2022 e ver o Parlamento dissolvido pelo Presidente da República.
Em um resultado surpreendente as pesquisas de intenção de voto indicavam empate técnico com a maior legenda da oposição, o Partido Socialista saiu das urnas, em janeiro de 2022, com maioria absoluta na Assembleia da República.
Apesar da situação confortável na Casa, o terceiro mandato de Costa foi marcado por uma sucessão de escândalos políticos no primeiro escalão e pela queda acentuada da popularidade do líder socialista.
O caso atual também reacendeu as memórias de corrupção ligadas ao partido. Último integrante da legenda a ser primeiro-ministro antes de António Costa, José Sócrates foi um dos principais alvos da operação Marquês, conhecida como “Lava Jato lusitana” por também atingir políticos e empresários.
Sócrates governou Portugal entre 2005 e 2011, mas só foi objeto da investigação após deixar o cargo. Em novembro de 2014, ele foi preso no aeroporto de Lisboa, após retornar de uma temporada em Paris.
Nove anos depois, o ex-premiê ainda não foi foi julgado, e algumas das acusações correm risco de prescrever. Citando fragilidades nas provas, em abril de 2021, o juiz responsável pelo caso decidiu que Sócrates não seria julgado por corrupção, mas ainda enfrentará a Justiça por seis outros possíveis crimes: três referentes a lavagem de dinheiro e três por falsificação de documento, envolvendo pagamento por uma dissertação de mestrado.
Embora não tenha sido condenado, o ex-premiê tornou-se uma figura considerada tóxica dentro do partido. Em entrevista à Folha, Sócrates afirmou que foi deixado de lado pelos socialistas. “Eu nunca pedi ao PS que me defendesse, mas nunca pensei que fosse o próprio Partido Socialista a atacar-me”, disse.
GIULIANA MIRANDA / Folhapress