CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – Um dia após a Justiça do Paraná ter anulado sua condenação pela morte do menino Evandro Ramos Caetano, a terapeuta ocupacional Beatriz Abagge diz que sua luta ainda não acabou.
“Começa agora uma nova etapa, para que os torturadores sejam responsabilizados”, afirma ela, em referência à violência policial que sofreu há mais de 30 anos para fazer uma falsa confissão do crime.
“Tortura é crime imprescritível. Em que pese alguns juristas falarem que não, nossa Constituição já prevê isso. O Brasil é signatário de tratados internacionais quanto a isso. A minha meta agora será essa”, afirma ela, em entrevista à Folha após a decisão da Justiça.
Beatriz tem os nomes de ao menos 14 policiais que participaram da sua prisão e diz que a responsabilidade de cada um deve ser apurada. “Eu penso que caberia ao Ministério Público [agir]. Mas, a gente não vai esperar. A gente deve provocar. É o que eu quero fazer neste momento. A gente tem que mostrar que tortura não deve ser aceita”, afirma ela.
O menino desapareceu em abril de 1992 em Guaratuba, no litoral do Paraná, e sete pessoas foram acusadas pelo Ministério Público -quatro acabaram condenadas. Além de Beatriz, o artesão Davi dos Santos Soares, o pai de santo Osvaldo Marcineiro e o pintor Vicente de Paula Ferreira, morto em 2011.
Nesta quinta-feira (9), a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná decidiu por 3 votos a 2 anular as quatro condenações com base em fitas de áudios que vieram à tona em 2021, e que revelam que os acusados foram torturados por policiais para fazerem uma falsa confissão, de que teriam matado o menino.
Procurado nesta sexta (10) pela reportagem sobre eventual abertura de procedimento sobre as torturas após a decisão da 1ª Câmara Criminal, o Ministério Público encaminhou uma nota na qual diz que “irá manejar os remédios recursais adequados ao caso após tomar ciência oficial da íntegra dos autos e do conteúdo da decisão”.
Os réus já haviam relatado a tortura no passado, mas o caso nunca foi apurado e esclarecido pelas autoridades. Em 2021, com base nos novos áudios, a defesa de Beatriz, Davi e Osvaldo protocolou um pedido de revisão criminal, cujo mérito foi julgado ao longo de mais de quatro horas nesta quinta.
A família de Beatriz estava presente no julgamento, incluindo a mãe dela, Celina Abagge, que também foi alvo do Ministério Público –a acusação contra ela prescreveu por causa da idade, mais de 70 anos. “É muito desgastante, muito cansativo, mas a gente achou importante acompanhar pessoalmente”, diz ela.
Sobre o julgamento, além de mencionar o trabalho do desembargador que discordou do relator do caso e mudou o rumo da votação a favor da defesa, Beatriz disse ter se emocionado com a fala do representante do Ministério Público na segunda instância.
Em breve manifestação, o procurador de Justiça Silvio Couto Neto se posicionou favoravelmente à revisão criminal de um caso que considerava “perturbador”. Segundo ela, foi a primeira vez em mais de 30 anos que ouviu um representante do Ministério Público se posicionar a favor do seu pleito.
Ao julgarem procedente a revisão criminal, o colegiado reconheceu a tortura e a ausência de provas, absolvendo os acusados, que agora também podem receber alguma indenização.
Beatriz ficou 5 anos e 9 meses na prisão. Diz que sente que a decisão desta quinta é o desfecho de uma etapa, mas que ainda não sabe como lidar com isso. “A gente é acostumada a lidar com a briga, a lidar com as pessoas te acusando. Então, quando vem a empatia, é mais difícil se posicionar. Porque é uma vida lutando, sabe? E agora? Para onde eu vou?”, afirma ela.
Em nota divulgada na noite desta quinta, o advogado Figueiredo Basto e sua equipe, responsável pela defesa dos condenados, disseram que foram 31 anos de “uma incansável luta” e que os três desembargadores “fizeram história ao deixar claro que a tortura não será aceita como método de investigação”.
“Hoje, a Justiça foi feita. Nada disso seria possível se não fosse o brilhante trabalho do Ivan Mizanzuk, que, sem a pressão da época, logrou obter as fitas que haviam sido escondidas pelo Grupo Águia da Polícia Militar. O julgamento de hoje é uma lição para o presente e para o futuro”, continua a nota.
As novas fitas, indicando que as confissões ocorreram sob tortura, foram reveladas pelo jornalista Ivan Mizanzuk. Ele investigou o caso por anos -a apuração virou um podcast e, depois, uma série documental exibida em 2021 na Globoplay, “O Caso Evandro”.
“As gravações acrescentam novas perspectivas sobre os fatos e provam aquilo que sempre alegaram os acusados Beatriz, Osvaldo, Davi e Vicente: de que eram gravados enquanto torturados. Além disso, constituem prova cabal daquilo que sempre foi dito por esta defesa: o fato de que havia outras fitas guardadas nos porões da Polícia Militar”, disse o advogado Figueiredo Basto.
CATARINA SCORTECCI / Folhapress