LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) – Se os egípcios pintados num pátio de Los Angeles pudessem falar, seriam os maiores guardiões da história do nascimento de Hollywood. Afinal, eles decoram o local onde aconteceu o primeiro tapete vermelho cinematográfico do mundo, liderado por Douglas Fairbanks, astro de “Robin Hood”.
O filme em preto e branco foi a primeira estreia de Hollywood, em outubro de 1922, orquestrada pelo magnata do entretenimento Sid Grauman para inaugurar seu novo empreendimento, a sala de cinema Egyptian Theater.
Cento e um anos depois, o cinema ainda é um dos mais exuberantes de Los Angeles, com destaque para as esculturas de escaravelho e cisnes no teto da sala de 516 lugares.
E graças a uma reforma de US$ 70 milhões (R$ 340 milhões), que o manteve fechado nos últimos quatro anos, o cinema também guarda as melhores tecnologias, como um sistema de som de última geração e equipamentos para rodar qualquer tipo de filme, incluindo os altamente inflamáveis de nitrato em 35 mm.
Como uma boa trama hollywoodiana encharcada de ironia, quem pagou a conta da restauração foram os novos donos do espaço, a Netflix, que revolucionou o modelo de exibição de filmes online, esvaziando ainda mais cinemas de rua como o próprio Egyptian.
Seu estilo de negócios também é visto como vilão das mazelas da indústria e propulsor das greves de atores e roteiristas deste ano.
“É importante retribuir à indústria que tem nos dado tanto”, disse o CEO da Netflix, Ted Sarandos, num evento de reabertura para a imprensa, regado a doces, álcool, vários estilos de café e muita pipoca.
“Embora a Netflix seja relativamente nova na história de Hollywood, nós amamos essa história e, através deste investimento no Egyptian, podemos recuperar um pedaço da história para as gerações futuras.”
A Netflix comprou o Egyptian em 2020 da American Cinematheque, uma organização sem fins lucrativos que vinha enfrentando dificuldades financeiras. Um ano antes, a Netflix havia salvado do fechamento um cinema de Nova York, a sala Paris, com 500 lugares, reaberta em agosto.
A cinemateca vai continuar a operar o Egyptian e cuidar da programação do final de semana, focada em clássicos e festivais contemporâneos. Nos outros dias, a Netflix exibirá seus títulos.
Até 21 de novembro, acontece uma mostra de filmes em 70 mm, como “Boogie Nights”, “Aliens” e “Nope”. Já a Netflix estreia “Maestro”, de Bradley Cooper, e “Rebel Moon”, de Zack Snyder, em novembro e dezembro.
TERREMOTO E GUARDAS EGÍPCIOS
A American Cinematheque adquiriu o Egyptian em 1998 da cidade de Los Angeles após o cinema sofrer sérios estragos no terremoto de 1994.
A compra foi simbólica em troca de uma reforma de US$ 12 milhões, que criou um segundo cinema no interior do Egyptian e uma sacada com assentos na sala principal. Ambos foram retirados no projeto da Netflix para voltar à planta original de 1922.
Para quem frequentava o cinema antes da nova repaginada, é difícil perceber outras mudanças. O consultor histórico Peyton Hall, que trabalhou no projeto atual e de 1998, explicou que boa parte da reforma pesada é invisível ao público.
O prédio ganhou uma nova fundação de concreto e aço e teve sua estrutura reforçada contra terremotos, de acordo com novas leis de Los Angeles. Vazamentos de água recorrentes desde 1922 foram consertados com um novo sistema de impermeabilização e reboco externo.
“São coisas extremamente caras de fazer e que o visitante não percebe no final. Mas é o que faz o prédio ficar muito mais seguro para o futuro”, disse Hall, professor do Programa de Conservação do Patrimônio da USC (Universidade do Sul da Califórnia) e responsável pela restauração de dezenas de prédios famosos de Los Angeles.
Hall diz que o Egyptian é seu cinema favorito e que lembra da primeira vez que o visitou, em 1982. “Não lembro qual era o filme, mas meu cérebro registrou muito bem o impacto do prédio.”
A temática egípcia fazia parte do costume de transformar prédios em locais “exóticos” como uma forma de publicidade. Grauman também inaugurou cinco anos depois o Chinese Theater, a 400 metros do Egyptian, na mesma Hollywood Boulevard.
Mas se o mural de hieróglifos perto da entrada faz algum sentido, ninguém sabe ao certo. Michael Hernandez, que dá tours gratuitos do cinema, conta que já teve em seus grupos gente que entendia da escrita e que conseguia ler alguns símbolos.
“Grauman era rigoroso nos detalhes. Com certeza contratou gente que entendia do assunto”, disse Hernandez, acrescentando que o empresário fazia seus funcionários se vestirem de acordo com a temática.
Os homens se fantasiavam de guardas egípcios, anunciando o início da sessão, enquanto as mulheres usavam roupas de hárem, levando os convidados até seus assentos. “E tudo isso ao som de música egípcia no pátio. Ao vivo, claro.”
FERNANDA EZABELLA / Folhapress