BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A continuidade do trabalho remoto no governo federal após a pandemia de Covid-19 opõe servidores públicos e os comandantes de ministérios e estatais. Enquanto gestores querem a volta ao presencial, funcionários defendem o home office.
O caso mais extremo é o da Dataprev, onde cerca de 10% do quadro de funcionários entrou na Justiça para continuar a trabalhar de casa depois de o sindicato da categoria assinar um acordo com o comando da empresa aceitando a volta ao presencial.
Na administração direta e nas autarquias, o teletrabalho é regido pelo PGD (Programa de Gestão e Desempenho). As empresas públicas e de economia mista não estão incluídas e têm autonomia para estabelecer programas semelhantes.
No PGD, o servidor combina com a chefia uma série de tarefas que precisarão ser cumpridas em um determinado período. Com o cronograma estabelecido, a pessoa fica dispensada de bater o ponto presencialmente, podendo cumprir suas atividades de onde estiver.
O PGD é facultativo e cada órgão é responsável por normatização, fomento, execução e monitoramento. Assim, as regras podem variar de lugar para lugar.
“Entre as atividades que, preferencialmente, poderão ser executadas de forma remota estão as que demandam maior esforço individual e menor interação com outros agentes públicos”, afirmou, em nota, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviço Público.
“Da mesma forma, a adoção do teletrabalho não poderá ocorrer caso as atividades exijam a presença física do participante na unidade ou que sejam executadas externamente”, disse a pasta.
A Folha de S.Paulo procurou todos os 38 ministérios para saber o quantitativo de servidores em teletrabalho, dos quais 18 responderam. Juntos, afirmaram ter 14,5 mil funcionários em regime híbrido ou totalmente remoto, de um total de 36,3 mil.
O órgão com a maior quantidade relativa de servidores em teletrabalho é a AGU (Advocacia-Geral da União), que tem 42% do quadro em teletrabalho.
Apesar da alta adesão, o teletrabalho está longe de ser unanimidade entre os gestores públicos. Membros do alto escalão do governo que não quiseram se identificar se queixam da modalidade, que, segundo eles, dificulta mudanças de cultura e implementação de novas políticas nos órgãos.
A face mais pública dessa visão é a do ministro da Previdência, Carlos Lupi, que tente reduzir a fila para perícias médicas realizadas pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Hoje, entre 30% e 40% do quadro de servidores está no trabalho remoto, e Lupi disse que quer levar esse número a zero até o fim deste ano.
Na Dataprev, a atual gestão resolveu dar um cavalo de pau na política de teletrabalho e mudou a permissão para ficar totalmente remoto e sem obrigação de morar no local de lotação para um modelo híbrido com presença em três dias da semana.
O problema é que muitos funcionários não podem ou não querem voltar para o presencial e adequaram sua vida para o remoto a partir da adoção da política de teletrabalho em definitivo da gestão anterior.
Por causa disso, tentaram primeiro administrativamente manter o regime a distância, uma vez que a empresa permite a situação em casos excepcionais. Muitos dos pedidos foram negados.
A empresa afirmou que tem hoje 2.900 funcionários, dos quais 1.800 estão em regime híbrido e 127 no teletrabalho integral.
O segundo caminho tentado foi via movimentação sindical. Os servidores chegaram a incluir a demanda pelo trabalho remoto entre os tópicos a serem discutidos com a companhia na negociação da data-base e se sentiram traídos quando um acordo sem o assunto foi assinado.
Diversos funcionários da Dataprev entraram com uma ação na Justiça contra o próprio sindicato para cancelar a parte do acordo que fala sobre o trabalho remoto.
Os servidores da Dataprev são representados pela Fenadados (Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Processamento de Dados, Serviços em Informática e Similares), que não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Muitos deles conseguiram liminares judiciais coletivas -decisões provisórias- para manter o teletrabalho completo.
Questionada sobre quantos funcionários estavam nessa situação, a Dataprev afirmou que eles representam aproximadamente 60% dos empregados no Rio de Janeiro, em São Paulo, na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte. A companhia não disse o total de funcionários nesses locais.
A empresa defendeu ainda o modelo híbrido, que, segundo ela, “é importante para intensificar uma cultura de criatividade e engajamento”.
“O objetivo do novo modelo de trabalho é atender, com melhor qualidade e eficiência, as demandas de seus clientes públicos”, afirmou.
Os funcionários da Dataprev questionam esse argumento. Um manifesto escrito por eles diz que “o índice de absenteísmo apresentou queda vertiginosa [com o teletrabalho], indo de uma média de pouco mais de nove dias, em 2019, para uma média de menos de seis dias, de 2020 a 2022”.
Eles apontam também “um aumento de cerca de 50% do seu lucro do ano de 2019 para 2022, que não é decorrente de seu faturamento, visto que este se manteve estável próximo de R$ 1 bilhão”.
“Graças a esse novo modelo de trabalho neste ano foram pagos dividendos e JSCP [juros sobre capital próprio] à União e ao INSS na importância de R$ 389 milhões, ante os quase R$ 36 milhões pagos em 2020, mas referente ao resultado de 2019, pois em 2021, foram pagos quase R$ 191 milhões”, diz o texto.
A Folha de S.Paulo conversou com dois funcionários da Dataprev que querem manter o teletrabalho por motivos de saúde e que não moram mais na cidade onde são lotados.
O analista de TI Ivan Linhares trabalhava no Rio de Janeiro, mas hoje mora em Cachoeira Paulista (SP).
Na capital fluminense, ele desenvolveu síndrome do pânico. A isso se somou um problema na coluna pouco antes de a pandemia da Covid chegar ao Brasil.
“Com a pandemia vi que era possível fazer todas as atividades em teletrabalho, inclusive trabalho ainda mais porque poupo o tempo com várias coisas, como o transporte”, disse.
Giuliane Souza também deixou o Rio de Janeiro. Ela se mudou para Manaus assim que a empresa permitiu morar em uma cidade diferente.
“Tenho seis anos de Dataprev, tenho problema de saúde e tirei 25 dias em dois anos e meio até o começo da pandemia. De três anos e meio para cá, eu me ausentei em oito dias, sendo que três foram por licença psiquiátrica por causa do retorno ao presencial”, contou.
LUCAS MARCHESINI / Folhapress