SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre o desalento de quem passou décadas alertando sobre o aquecimento global e a vocação de divulgador científico, Alexandre Araújo Costa, 53, procura explicar como se formam ondas de calor como a dos últimos dias e por que elas se tornaram mais frequentes.
Doutor em ciências atmosféricas pela Universidade Estadual do Colorado (EUA) e professor titular da Universidade Estadual do Ceará, ele não arrisca dizer se este foi o último calorão do ano nem afirma que vislumbramos um “novo normal” do clima.
“Talvez não seja adequado falar em novo normal e isso não é boa notícia. Nós estamos com um clima fora do equilíbrio, em processo de mudança, e ainda não sabemos onde vai parar.”
O que se sabe, contudo, não é nada animador, sobretudo quando se conhecem as projeções para as diferentes regiões do Brasil: “Não dá para esperar coisa boa em nenhuma, isso eu posso dizer”.
*
Pergunta – Como se formam ondas de calor como a atual?
Alexandre Araújo Costa – Pela formação de bolsões de alta pressão. Basicamente, existe uma massa de ar com um movimento descendente como se alguém estivesse soprando o chão. Como essa massa de ar vem de cima, ela tende a ser seca. Isso reduz a nebulosidade e facilita o aumento da insolação, ou seja, a radiação solar fica mais intensa. Então o nível de aquecimento fica muito forte.
Além disso, essa massa de ar, por ser de alta pressão, funciona como uma barreira para a entrada de outras massas de ar [frentes frias, por exemplo]. A tendência, portanto, é que esses sistemas perdurem por vários dias.
P. – O bolsão de alta pressão com essa intensidade é um fenômeno normal?
A. A. C. – Nessa intensidade, poderia acontecer, mas com um tempo de recorrência de várias décadas, algo muito raro [uma vez a cada 50 anos]. Mas, por causa do aquecimento global, esses eventos estão muito mais comuns.
Às vezes as pessoas têm um pouco de dificuldade de entender isso. Elas pensam: “O aquecimento global é só 1,5°C, enquanto na minha cidade a temperatura varia 15°C em um só dia”. Mas 1°C que você mova na média faz uma diferença enorme na ocorrência dos extremos, porque muda a cauda da distribuição estatística dos eventos.
O problema é que os ecossistemas são adaptados para certa alternância de temperatura, alta pressão, chuvas etc. Com o aquecimento global, a gente começa a ter eventos que estão fora dos limites de adaptação.
P. – Quando faz muito frio no Brasil, algumas pessoas questionam o aquecimento global, e especialistas como o sr. explicam que uma coisa não tem a ver com a outra. Agora que está fazendo muito calor, especialistas como o sr. dizem que tem relação com o aquecimento global. Por que o frio não nega o fenômeno e o calor o confirma?
A. A. C. – Pela estatística. Os eventos de frio extremo estão menos frequentes não é que desapareceram. Em contrapartida, os eventos de calor extremo estão muito mais frequentes. Praticamente cinco vezes mais frequentes.
É essa assimetria que nos leva a cravar a causa. Se fosse um sistema de probabilidades distribuídas equitativamente, para cada recorde de calor teríamos um recorde de frio.
P. – Já dá para falar que esse é o novo normal de calor?
A. A. C. – Talvez não seja adequado falar em novo normal e isso não é boa notícia. Nós estamos com um clima fora do equilíbrio, em processo de mudança, e ainda não sabemos onde vai parar.
Mas a gente tem uma ideia. Se a gente chegar a um mundo 4°C mais quente, que seria a situação de pior cenário [dos modelos], esses eventos de calor de tempo de recorrência de 50 anos no período pré-industrial ficariam 39 vezes mais frequentes. Ou seja, aconteceriam quase todo ano. E se esse for o novo “normal”, como vai ser o novo extremo?
Você pode imaginar que, num mundo 4°C mais quente, vários pontos do Brasil chegariam a 50°C. Nenhum dos nossos biomas resiste a isso. Nem a caatinga. Olha, está feio. É duro, porque a gente avisou tanto. Faz 20 anos que não faço outra coisa.
P. – Dada essa instabilidade do clima, é possível ter mais ondas de calor ainda neste ano?
A. A. C. – Não dá para bater o martelo sobre isso. Até porque nós estamos entrando no verão, quando essas ondas de calor são mais frequentes. Dezembro e janeiro são os meses mais comuns para isso.
P. – O que podemos esperar para as diferentes regiões do Brasil no futuro?
A. A. C. – Não dá para esperar coisa boa em nenhuma, isso eu posso dizer. No Nordeste, a tendência maior é que as chuvas fiquem mais restritas à porção norte. Os pedaços mais ao sul do Nordeste tendem a ter uma diminuição das chuvas, e um aumento enorme da temperatura e da aridez.
A amazônia é uma preocupação grande, porque as plantas da amazônia não são adaptadas para secas frequentes. E talvez a coisa mais trágica seja chegarmos a um ponto de não retorno por causa do aquecimento global, que produz temperaturas altas demais e torna a frequência de secas muito maior. Nesse cenário, vai ser inevitável que as plantas com característica de floresta tropical percam espaço.
Só que boa parte da umidade que chega ao Centro-Oeste, ao Sudeste e até ao Sul depende da amazônia. Se a gente perde a amazônia e diminui esse fluxo, a resposta imediata é o prolongamento da estação seca no Brasil central. Isso tem como consequência o aumento da probabilidade de ondas de calor e a intensificação delas.
Ou seja, já falamos que essas ondas de calor vão ficar mais frequentes pelo contexto global. Só que nós ainda acrescentaremos um elemento extra pela questão climática regional.
P. – De que maneira essas mudanças interferem na probabilidade de haver tempestades como as que costumam ocorrer no Sudeste no começo do ano?
A. A. C. – O aquecimento global muda a física por trás do ciclo hidrológico. Existe uma lei da física que diz o seguinte: quanto mais quente a atmosfera, mais vapor d’água ela é capaz de armazenar.
Ou seja, a atmosfera retira mais água da superfície, então as secas ficam mais severas, porque as taxas de evaporação são maiores. E a segunda consequência é que, quando esse vapor d’água se condensar, vai ter mais água em estado líquido ou sólido, no caso do granizo.
Então a tendência é haver mais períodos de estiagem, muitas vezes com ondas de calor mais longas, mais intensas, e, do outro lado, chuvas mais intensas. Parece contraditório, mas não é. É como se trocasse um balde pequeno por um grande: demora mais para encher, mas, na hora de esvaziar, tem mais água.
RAIO-X
Alexandre Araújo Costa, 53
É mestre em física pela Universidade Federal do Ceará, doutor em ciências atmosféricas pela Universidade Estadual do Colorado (EUA) e professor titular da Universidade Estadual do Ceará. Lidera o projeto de divulgação científica chamado “O que você faria se soubesse o que eu sei?”.
UIRÁ MACHADO / Folhapress