Mostra da artista Rivane Neuenschwander lida com as feridas da ditadura militar

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Três dias após o golpe militar dar início à ditadura no Brasil, policiais invadiram dois apartamentos no Rio de Janeiro e prenderam nove chineses sob a alegação de que eles eram agentes trazidos ao país para fazer uma revolução comunista.

“Não conseguiram encontrar nada que pudesse nos incriminar, então disseram que os remédios chineses para gripe e as agulhas de acupuntura que encontraram no apartamento seriam usados para assassinatos por envenenamento”, disse em depoimento à reportagem um dos que foram detidos, Ju Qingdong.

Quase sessenta anos depois daquele mês de abril de 1964, a paranoia comunista do governo fardado é relembrada numa série de nove ilustrações de Rivane Neuenschwander —a artista espetou agulhas de acupuntura sobre gravuras do corpo humano retiradas do banco de dados britânico Wellcome Collection. Ela também removeu as cabeças dos desenhos.

A obra, “Agulhas Conspiratórias”, está exposta até 3 de fevereiro de 2024 na galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, em São Paulo, numa mostra com trabalhos dos últimos anos da artista mineira feitos a partir de memórias dos anos de chumbo. Neuenschwander, de 56 anos, ouviu relatos de amigos, familiares, de um médico seu e até de desconhecidos via Instagram para criar boa parte das peças agora exibidas.

Muito do que se vê lida diretamente com a ditadura, embora de maneira poética. Um trabalho sobre tecido traz, embaralhados, nomes de locais onde presos políticos eram executados ou tinham seus corpos desovados, como Ponta da Praia.

A escolha desta base da Marinha no Rio de Janeiro não foi por acaso —poucos dias antes de assumir a Presidência em 2019, Jair Bolsonaro prometeu enviar a “petralhada” para lá. Nesta e noutras obras, a exposição faz uma conexão do passado com o presente.

“O que eu tentei na mostra foi entender porque determinados indivíduos se identificam com um sujeito como o Bolsonaro, porque isto não é da ordem do racional”, afirma a artista, conhecida por seus trabalhos de alta temperatura política —em um deles, retratou o ex-juiz Sergio Moro como um rato.

Outra obra exposta é um círculo de pedras sobre as quais a artista pintou, em fonte psicodélica estilo anos 1970, os nomes de empresas estatais e privadas que colaboraram com a ditadura ou se beneficiaram do regime, sendo que várias delas ainda estão na ativa. A lista de nomes foi retirada de um documento da Comissão da Verdade.

Logo na entrada da galeria, uma vitrine exibe documentos e livros que fizeram parte da pesquisa para os trabalhos expostos. Vemos ali uma reportagem de jornal sobre o caso dos chineses presos, um certificado de censura da peça “Um Bonde Chamado Desejo” e uma série de frases usadas pelos governos da época para justificar a construção da rodovia Transamazônica, dentre as quais “pista para encontrar a mina de ouro”.

Segundo Neuenschwander, a reunião dos documentos é relevante para que as gerações mais jovens que visitarem a exposição entendam o Brasil das décadas de 1960 a 1980. “A depender dos pais, eles não passavam [para os filhos] o conhecimento da ditadura. Naquela época nem se podia falar.”

Mas nem tudo na exposição tem tom lúgubre ou procura elaborar traumas pela via plástica. Algumas das obras lidam com memórias afetivas, não políticas, como é o caso de “Caixinha de Costura”, uma tapeçaria composta por tecidos, miçangas, lantejoulas e retalhos que remete a um ambiente caseiro, familiar.

Outro trabalho nesta chave é uma trama formada por 50 faixas de judô laranjas, em referência a um amigo de infância da artista. “Mesmo na época da ditadura, a gente levava a vida”, ela diz.

O FARDO, A FARDA, A FRESTA – RIVANE NEUENSCHWANDER

– Quando De ter. à sex., das 10h às 19h; sáb., das 10h às 18h

– Onde Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel – r. James Holland, 71, São Paulo

– Preço Grátis

JOÃO PERASSOLO / Folhapress

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