Dalton Trevisan reedita seu livro raro de estreia, antes renegado, após 78 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 11 de março de 1945, explodiu uma caldeira na fábrica de louça, refratário e vidro João Evaristo Trevisan, na região Central de Curitiba, atingindo Dalton, um dos três filhos do proprietário, então estudante de direito com pretensões literárias.

O acidente provocou traumatismo craniano no jovem de 19 anos, que chegou a ficar em coma e passou o mês no hospital. “Olhei pela primeira vez a morte, dentro dos olhos, e mais que o sofrimento físico, doeu a revelação de que eu era mortal —nesse dia nasceu o escritor”, declararia Dalton Trevisan à revista Status em rara entrevista de 1979, quando já era conhecido como o Vampiro de Curitiba pelo estilo recluso e pelo seu conto mais famoso.

Ao sair do hospital, o autor se debruçou sobre um texto que se tornaria seu livro de estreia, a novela “Sonata ao Luar”, que publicou naquele mesmo ano, já aos 20, em uma tiragem de 200 exemplares paga do próprio bolso para a Gráfica Mundial.

A obra teve poucas unidades vendidas em uma banca de jornal e o restante foi enviado para suplementos, críticos literários e escritores de todo o país.

Sobre o texto, Carlos Drummond de Andrade escreveu ao curitibano em uma carta de 18 de julho de 1946: “A novela realmente está construída num plano muito literário, embora seu material seja colhido na contemplação direta da vida. Acho que é um bom começo para quem quer mergulhar na ficção e tem alguma coisa a contar. Você tem.”

Apesar do elogio comedido de colegas como Marques Rebelo e do crítico Antônio Cândido, “Sonata ao Luar” só repercutiu na provinciana imprensa local da época, que acusavam o autor de indecência e conclamavam a juventude cristã a repudiá-lo.

Em poucos anos a novela foi renegada por Trevisan —assim como o seu título seguinte, a seleção de contos “Sete Anos de Pastor”, de 1948. “Ele rejeitou ‘A Sonata’ do mesmo modo que renega todos os seus textos antigos. Toda a sua obra já passou por quatro fases de recriação. ‘O Vampiro de Curitiba’, de 1965, já foi revisado mais de 40 vezes. Para Dalton, é sempre a última versão que vale”, diz Fabiana Faversani, assistente do escritor que há duas décadas cuida do seu acervo.

Passados 78 anos, os exemplares remanescentes da raridade só podiam ser encontrados em leilões e sebos especializados. As duas unidades disponíveis no Estante Virtual saem por R$ 1.100 e R$ 1.600.

Mas nesta sexta, a segunda edição da novela chega ao mercado por R$ 98, pela editora independente curitibana Arte & Letra —somente em sua própria livraria de rua e café, no bairro Batel, na filial na PUC paranaense ou na loja virtual.

A módica tiragem de 150 exemplares foi um pedido do vencedor do Prêmio Camões de 2012 para que o título não ofuscasse sua obra principal. Assim como a fonte tamanho 14 do texto, que elevou a novela de 103 a 200 páginas, para que o autor de 98 anos conseguisse ler. Também foi dele a ideia de usar na capa um desenho do escritor Franz Kafka, substituindo a zincogravura de Guido Viaro do original.

Embora a Record seja sua editora oficial desde 1978, este é o segundo lançamento de Trevisan pela Arte & Letra, depois da coleção inédita de contos “A Mão na Pena”, de 2014, em edição artesanal. O editor e livreiro Thiago Tizzot diz ter se sentido atraído por “Sonata ao Luar” para além da mítica de obra renegada.

“Você vai lendo a descrição dele de Curitiba e dá a impressão que é uma ficção histórica, mas na verdade é como ele via a cidade na época.”, aponta Tizzot.

Já aparecem no texto as principais obsessões do escritor —autor de mais de 50 livros de contos e um único romance, “A Polaquinha”, de 1985—, como ambiguidade, ironia, elipses constantes, uma sensualidade naturalista, certo “falar cafajeste” de personagens quase sempre marginalizados e via de regra contraditórios, trechos de música popular, peças publicitárias e poemas (inclusive de autoria própria), o retrato de uma pequena burguesia hipócrita e a urbe como arena de uma temática universal.

Escrita em forma de diário, “Sonata ao Luar” traz as desventuras do narrador Balduino, do poeta Teolindo Bragança e do contestador Nicanor —alterego assumido de Trevisan que reapareceria em outras obras— em meio à boemia de uma Curitiba ainda com ares de comarca.

O texto apresenta fragilidades de estrutura e um excesso de imagens e adjetivações que contrastam com a reescrita rigorosa e com a síntese afiada que, a partir de “Novelas Nada Exemplares”, de 1959, marcariam a fase madura do escritor.

“Dalton aceitou publicar agora mais pela relevância histórica do que literária, para que os leitores que acompanham a sua trajetória possam a entender o texto como um embrião de ‘A Volta do Filho Pródigo’, de 1953, ‘Os Botequins’, de 1964, e ‘Em Busca de Curitiba Perdida’, de 1992, entre muitos outros”, diz Faversani, que editou a novela.

Ainda sem planos para o centenário de Trevisan, a ser comemorado em 2025, a assistente recentemente trabalhou na curadoria dos contos que integram sua “Antologia Pessoal”, que saiu pela Record, e das mais de 600 cartas trocadas com o escritor Otto Lara Resende que foram entregues aos cuidados do Instituto Moreira Salles.

Elas devem integrar um livro de correspondências do mineiro com Trevisan e ainda Fernando Sabino, Hélio Pelegrino e Paulo Mendes Campos, a ser publicado em 2024, com edição de Elvia Bezerra, pela Companhia das Letras.

SONATA AO LUAR

– Preço R$ 98 (200 págs.)

– Autoria Dalton Trevisan

– Editora Arte & Letra

CARLOS MESSIAS / Folhapress

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