SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 15 de junho de 2021, o Brasil atingiu a marca de 488 mil mortes pela Covid-19. A vacinação, iniciada em janeiro, começava a engrenar, mas ainda estava distante da universalização. Naquele dia, 34,6% da população estava imunizada com a primeira dose e apenas 14,8% também com a segunda.
Na véspera, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, havia se deixado fotografar, com peito aberto e mamilo exposto, sendo vacinado pelo então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
“Muso da imunização”, resumiu a Primeira Página da Folha de S.Paulo impressa. A cena era parte de uma tentativa do governo de atenuar a imagem negacionista que emanava do chefe, Jair Bolsonaro.
A imagem de Campos Neto rendeu brincadeiras e comentários irônicos de membros do governo que chegavam para uma reunião ministerial no Palácio do Planalto, marcada para as 8h daquele dia.
Agendado havia alguns dias, era um encontro rotineiro da equipe para discutir temas como economia e, inevitavelmente, a resposta do governo à pandemia, muito criticada pela postura do chefe de Estado e pelas falhas logísticas na distribuição das vacinas.
Participavam 22 ministros, mais os presidentes dos bancos públicos (inclusive o próprio Campos Neto) e o dos Correios. Como já de praxe, o vice-presidente, Hamilton Mourão, estremecido com Bolsonaro, não foi convidado.
Naquela manhã, o que começou como uma conversa descontraída acabou se tornando um questionamento explícito da equipe ministerial sobre a recusa de Bolsonaro em se vacinar.
Segundo participantes da reunião que conversaram com a reportagem em caráter reservado, a pressão dos subordinados fez com que pela primeira vez o presidente tivesse dado sinais de que poderia se imunizar publicamente embora isso, no fim, jamais tenha ocorrido.
Um dos primeiros a puxar o tema foi Ricardo Salles, do Meio Ambiente, que deixaria o cargo dali a um mês, em meio a suspeitas de participação em um esquema de exportação ilegal de madeira da Amazônia.
“Presidente, antes de começar a reunião, queria fazer uma proposta”, disse.
“Fala aí, Salles”, respondeu Bolsonaro.
“O senhor poderia aproveitar essa onda gerada pelo Campos Neto e, já que tem físico de atleta, também ser vacinado sem camisa pelo Queiroga”, afirmou.
A referência era a uma polêmica declaração do então presidente no início da pandemia, quando chamou a Covid de gripezinha e disse que não teria problemas se pegasse a doença por ter “histórico de atleta”.
Ouviram-se risadas discretas na sala, inclusive de Bolsonaro, que nada falou.
Salles arrematou: “Isso vai ajudar a virar a narrativa contra o governo na pandemia. O senho não precisa falar nada, só se deixar fotografar”.
Com o presidente calado, outros pediram a palavra. Fábio Faria, das Comunicações, foi enfático ao ligar o tema da pandemia à campanha eleitoral do ano seguinte, em que Bolsonaro disputaria a reeleição.
Disse que o cenário econômico era muito bom e que o Brasil começava a reagir com as medidas tomadas pelo governo, como o auxílio emergencial de R$ 600 para pessoas que haviam ficado sem renda.
Mas um dos temas centrais da eleição, argumentou, seria a pandemia, e não adiantaria listar notícias positivas se o próprio presidente parecia não acreditar na eficácia dos imunizantes. “Eu acho que, se o senhor não se vacinar, a gente corre o risco de perder”, decretou, numa fala que se revelaria profética.
Também se manifestaram em seguida, entre outros, Tereza Cristina (Agricultura), Augusto Heleno (GSI), João Roma (Cidadania) e Paulo Guedes (Economia) este, o único que usava máscara o tempo todo.
O recado geral da equipe era o de que Bolsonaro tinha inadvertidamente caído numa armadilha. Tantas foram as críticas e ressalvas feitas por ele contra a vacina que não importaria o que seu governo fizesse, a pecha de negacionismo estava grudada.
A recusa do presidente ofuscava, por exemplo, a ação do governo federal para comprar vacinas em grandes quantidades e fazer sua aplicação em massa.
Após fazer campanha contra a Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e promovida pelo então governador de São Paulo, João Doria (à época no PSDB), o Ministério da Saúde estava investindo em outras marcas, como a AstraZeneca.
Na mesma reunião, Tereza Cristina disse em determinado momento que as pessoas entendiam e respeitavam as dúvidas que Bolsonaro tinha sobre a vacina e a preocupação com possíveis efeitos colaterais, especialmente em crianças. Mas reafirmou o dito pelos colegas, que um gesto pessoal dele ao tomar a vacina seria muito importante.
Também houve concordância de vários dos presentes com a oposição do presidente à obrigatoriedade de as pessoas tomarem as doses e à criação de “passaportes vacinais”. A liberdade individual deveria ser respeitada.
Após ouvir os ministros por alguns minutos, a paciência de Bolsonaro, nunca das mais longas, se esgotou. Para encerrar o assunto, propôs uma enquete informal. “Quem aqui acha que eu tenho que me vacinar?”, perguntou.
Praticamente todos levantaram o braço. Um dos poucos que se mantiveram imóveis, expressando sua discordância, foi Onyx Lorenzoni, à época ocupando o cargo de ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência.
“Vou pensar, vou pensar”, disse o presidente diante da cena.
E encerrou a discussão, já que a pauta era extensa. Um dos pontos em debate era uma preocupação de Bolsonaro com a possibilidade crescente de racionamento de energia por causa da pior seca em mais de 90 anos, que havia esvaziado os reservatórios. A estiagem ameaçava até a privatização da Eletrobras, projeto prioritário para o governo.
O encontro terminou por volta de 10h20. Na saída, ministros comentaram entre si terem convicção de que o presidente cederia e finalmente tomaria a vacina.
Não foi o que se viu, no entanto. Naquela mesma tarde, poucas horas após o fim do encontro com os ministros, Bolsonaro retomava o velho personagem negacionista em um dos seus ambientes favoritos, o cercadinho de apoiadores que se concentravam na entrada do Palácio da Alvorada.
Indignado, esbravejou contra o “passaporte da vacina”, em discussão no Congresso, e prometeu vetar qualquer projeto nesse sentido que fosse aprovado.
“A vacina vai ser obrigatória no Brasil? Não tem cabimento”, disse, na conversa com a claque bolsonarista. “Eu não acredito que o projeto passe pelo Parlamento. Se passar, eu veto”, prometeu.
Um ex-ministro de Bolsonaro disse à reportagem que o então presidente foi pego de surpresa com a reação da sua equipe na reunião e chegou a cogitar realmente se vacinar. Mas desistiu quando especulações do tipo começaram a surgir em notas na imprensa, provavelmente vazadas por pessoas de seu entorno.
Irritado, acabou se refugiando no figurino em que se sentia mais confortável, o da polarização.
Embora não mais militasse frontalmente contra vacina, seguiu sendo um crítico de medidas de distanciamento social e uso de máscaras. Também nunca recuou completamente da defesa de remédios comprovadamente ineficazes, como a cloroquina.
Aquele junho de 2021 ainda reservaria uma bomba para o governo relacionada à pandemia. No dia 29 do mês, a Folha revelou que o representante de uma empresa vendedora de vacinas dizia ter recebido pedido de propina de um alto funcionário do Ministério da Saúde.
O valor do suborno seria de US$ 1 por dose da vacina AstraZeneca, num total de 400 milhões encomendadas. Bolsonaro negou as acusações, mas o caso contribuiu para arranhar ainda mais a reputação do governo nesse tema.
Um ano, 4 meses e 15 dias depois de ter sido cobrado por sua equipe, o presidente perdeu a eleição para o hoje presidente Lula (PT) pela ínfima diferença de 1,8 ponto percentual.
Na autópsia da derrota, quem conviveu com Bolsonaro no governo afirma quase de forma consensual que sua atitude com relação à pandemia foi definidora para o revés por estreita margem. E que ignorar os apelos para que se vacinasse foi talvez o maior tiro no pé.
FÁBIO ZANINI / Folhapress