Adriana Calcanhotto subiu ao palco com 15 minutos de atraso se inclinando em reverência a um público meio impaciente: milhares de pessoas suando em bicas numa tenda rodeada por chuva na noite desta quarta. Era a abertura da Flip.
E a artista começou saudando “a alegria como a prova dos nove”, numa de suas músicas que fazem referência direta ao movimento modernista tão impactado pela homenageada do ano, Patrícia Galvão.
“Temos uma diferença”, disse ela à plateia. “A Pagu largou a antropofagia e eu não. Em compensação, ela foi se dedicar às ideias comunistas, que eu larguei.”
Na primeira hora de show, as prometidas saudações a Rita Lee, Gal Costa e Elza Soares –representantes posteriores da insubmissão de Pagu– foram referências oblíquas.
Houve um texto de autoria de Maria Bethânia, “Caras e Bocas”, escrito para Gal em primeira pessoa; houve uma versão de “Sophisticated Lady”, canção de Duke Ellington gravada por Elza sobre tradução de Augusto de Campos, também celebrado na festa.
Foi uma apresentação em ritmo lento, montada e extensamente roteirizada a pedido da Flip com Cid Campos, filho de Augusto, que se apresentou com Calcanhotto. Ao fundo, projeções de Omar Salomão e Emilio Rangel misturavam fotos da cantora a desenhos de Pagu, uma compondo a outra.
Fazia tempo que uma cantora famosa não abria a Flip. A última vez deve ter sido a própria Gal, que cantou em julho de 2014 antes da festa que homenageou Millôr Fernandes.
É verdade que esta foi uma apresentação que extrapolou bem a música –a literatura deu o tom tanto na leitura de cartas de Pagu elogiando Clarice Lispector quanto em poemas da autora musicados por Cid e até numa pormenorizada declamação da lista de autores traduzidos por Augusto de Campos.
Logo antes do show, uma mesa de abertura com ar mais pesado de simpósio acadêmico abriu os trabalhos de homenagem a Pagu.
Era uma conversa entre o brasilianista americano David Jackson e a escritora Adriana Armony, com mediação da professora Eneida Leal Cunha.
Ele acaba de lançar volumes robustos que reúnem a produção jornalística da autora, um lado pouco conhecido em meio a seu prisma de personalidades. Já Armony vem publicar “Pagu no Metrô”, mistura de relato romanceado sobre a temporada dela em Paris e a busca da própria pesquisadora por seus registros na França.
Leal Cunha terminou a mesa afirmando que todos sairiam dali com um “dever de casa”, de ir atrás dos livros, e não foi o único termo que deu ao encontro um clima de sala de aula.
A professora levantou a hipótese de que o trabalho de Pagu como jornalista era onde a autora se fazia mais desenvolta, ao comentar a quente o tempo presente. Sua militância política foi um traço tão marcante de sua atuação quanto a literatura.
Alguns espectadores foram embora antes que a mesa se encerrasse, apressadas pelo barulho de trovão que anunciava a chuvarada que tomaria o resto da noite.
Esta Flip primaveril continua até domingo em Paraty, com mesas que tomam a cidade da manhã até a noite entre programação principal e diversas casas paralelas.
WALTER PORTO / Folhapress