‘Pedágio’ denuncia absurdos da ‘cura gay’ pela homofobia que ultrapassa a religião

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Massinhas de modelar tomam a forma de genitais pelas mãos de um grupo diverso, fiscalizado de perto por um pastor com sotaque português. Homens devem esculpir vaginas, e mulheres, falos. Por mais avesso a discutir sexo que o cristianismo seja, o religioso está determinado a fazer surgir ali um bacanal de esculturas luxuriosas.

Um pecado perdoável, já que sua intenção é justamente “corrigir” o que considera uma perversão. Os homens e mulheres ali reunidos sentem atração por pessoas do mesmo sexo, e foram matriculados –ou se matricularam– numa “cura gay”. A cena é uma dentre vários excessos usados por Carolina Markowicz para realçar o absurdo dessa pseudoterapia, sem base científica e considerada um ataque aos direitos humanos, que se esgueira, na realidade, pelos corredores da Câmara dos Deputados.

Em “Pedágio”, seu novo filme após o elogiado “Carvão”, ela filma a relação conturbada entre uma mãe não exatamente fervorosa, mas temente a Deus, e um filho que vive feliz fora do armário, para seu incômodo. Até que ela lhe dá um ultimato —ou vai à conversão, ou não terá mais casa, comida e roupa lavada.

“Me intriga o poder de absorção da homofobia numa sociedade com tantos problemas reais como a nossa”, diz Markowicz, às vésperas de embarcar para o Festival de Marrakech, no Marrocos, um país com leis contra a homossexualidade, mas que vem exibindo filmes com essa temática em seu principal evento do tipo.

“Vivemos num país em que pessoas em posições de poder tratam essa situação com um escárnio muito grande. Temos o deputado mais votado de Minas Gerais indo à Câmara de peruca [Nikolas Ferreira, do PL], tivemos a Damares Alves falando que a protagonista de ‘Frozen’ é lésbica. Isso fomentou em mim uma vontade de retratar esse charlatanismo, esse patético que tem muita adesão da população.”

Marrakech é mais um entre os vários festivais pelos quais “Pedágio” passou. Depois da estreia em Toronto, ganhou prêmios em mostras em Roma, Leeds e Estocolmo e, no Brasil, venceu o troféu de direção do Mix e os de atriz, ator, atriz coadjuvante e direção de arte no Festival Rio.

Somado aos prêmios já colecionados por “Carvão”, o filme levanta a cancela para Markowicz, agora, assumir a direção de uma produção estrangeira, sobre a qual ainda não pode dar detalhes. Mas, nela, deve repetir os temas que moldaram sua filmografia, que inclui ainda o curta “O Órfão”, premiado com a Palma Queer em Cannes há cinco anos.

Sexualidade, falso moralismo e hipocrisia são a coluna vertebral da sua obra até aqui. São temas que sempre a seduziram e que dialogam, de certa forma, com sua trajetória até o cinema. Criada no interior de São Paulo, num ambiente conservador, a diretora usa seus filmes para estudar tipos e performances sociais, por meio de personagens que vivem sob uma fachada.

“O modus operandi das pessoas do interior sempre me fascinou. É um universo muito rico narrativamente, porque dentro de casa as pessoas são diferentes do que elas são na rua”, disse ela no lançamento de “Carvão”. Em “Pedágio”, ela se dirige a um ambiente mais industrializado, Cubatão, que com suas torres sempre a ventilar fumaça capturavam sua curiosidade na estrada para o litoral paulista.

É uma cidade com um quê de apocalíptico para a diretora, e por isso foi escolhida como cenário. E seu pedágio, além da alusão ao escambo entre mãe e filho, batiza o longa porque é onde sua protagonista trabalha. Suellen, vivida por Maeve Jinkings, passa os dias liberando a passagem dos carros que atravessam Cubatão.

Sempre cansada, costuma chegar em casa irritada pelas provocações dos colegas de trabalho, que espalham vídeos de seu filho maquiado, coberto por plumas e paetês, vendendo cosméticos ao som de música pop na internet. Ela insiste para que ele pare com isso, mas Tiquinho, personagem de Kauan Alvarenga, se recusa.

Não é como se a relação entre os dois fosse totalmente problemática. Há amor e zelo. Ele se preocupa com o namorado folgado da mãe, a presenteia com produtos de beleza e traz seu sanduíche preferido ao voltar do trabalho numa lanchonete. Ela, por sua vez, distribui beijos e abraços.

Mas essa família aparentemente funcional desmorona quando uma amiga de Suellen, frequentadora assídua de uma igreja evangélica, sugere a ela que matricule Tiquinho numa “cura gay”. O curso é caro e, para pagá-lo, a protagonista prova ter uma moral elástica, se envolvendo com o crime enquanto reza para que Deus “endireite” o rapaz.

“Nessa realidade, você pode ser qualquer coisa menos gay. Há uma inversão de valores muito nefasta”, diz Markowicz. “É muito fácil você associar fundamentalismo religioso à homofobia, mas ela é tão poderosa que ultrapassa a religião. Quantas pessoas não frequentam a igreja, mas não querem ter um filho gay?”

Para recriar a terapia que guia a trama, a diretora frequentou cultos e ouviu testemunhos de quem passou pela experiência. Ela faz o alerta, no entanto, de que tudo o que é visto em cena é hipersaturado.

Além da aula com massinha de modelar, há uma palestra de um religioso que acentua a relação de colonizador e colonizado, de alguém que impõe seus costumes, em que narra a experiência de um “ex-gay”. Mostra fotos do rapaz com uma garrafa de cerveja no ânus, diz que ele estava perdido e, no clímax do discurso, abre as portas para que ele, sua mulher e seu filho entrem na sala.

E se Markowicz exagera ao filmar a suposta cura, preferiu ser comedida ao escrever seus protagonistas. Tiquinho está em paz com sua sexualidade e não sofre, ao menos internamente, por ser gay. Já Suellen ouve os conselhos religiosos da amiga, mas está longe da imagem do crente fundamentalista que se convencionou mostrar nas telas.

Ela é mãe solteira, anda pela casa com roupas apertadas, tem uma vida sexual ativa e gosta de tomar uma cervejinha no bar no fim do dia. A ideia era não vilanizar ninguém, explica a diretora, que decidiu limitar a caricatura ao intrinsecamente grotesco processo da “cura gay”.

“A Suellen tem equívocos produzidos nela por questões sociais, assim como o Tiquinho não é uma pobre vítima perfeita, ele enche o saco dela também. Se você vilaniza, você afasta as pessoas, e eu queria que o público se enxergasse naquela situação, que mães e filhos se identificassem com aquilo.”

PEDÁGIO

Quando Estreia nesta quinta (30), nos cinemas

Classificação 16 anos

Elenco Maeve Jinkings, Kauan Alvarenga e Thomas Aquino

Produção Brasil, Portugal, 2023

Direção Carolina Markowicz

LEONARDO SANCHEZ / Folhapress

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