Polícia Militar nasce de cangaceiros de farda no sertão do romance ‘Gambé’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na cartografia do final do século 19, as terras do oeste paulista eram denominadas “sertão desconhecido habitado por índios”. Em pouco tempo, já não eram nem tão desconhecidas nem tão indígenas assim.

A região foi tomada por fazendeiros, seus capangas e bugreiros, e atravessada pelos trilhos da locomotiva paulista, assentados sobre o sangue dos milhares de kaingangs que lutaram por seu território e levaram chumbo. Atraiu também bandoleiros de toda parte, atrás das novas possibilidades daquele sertão, para o terror geral, dos caipiras aos coronéis.

Terra de ninguém, tretas mil. Cada um levava seu seguro preso na cintura, pronto para resolver conflitos e empreender vinganças na bala. Neste faroeste caboclo, entrava em ação a Captura, uma tropa da recém-criada Força Pública, instituição que daria origem à Polícia Militar de São Paulo.

Formado por mamelucos e ex-escravizados, o pelotão era liderada pelo famigerado Tenente Galinha, o “demônio loiro”, que se referia a seus homens como “negrada”, “pretaiada” ou “cambada dus inferno”. No lugar de prender, ele matava. E seus métodos, que subjugaram culpados e inocentes, eram tão celebrados quanto temidos. Qualquer semelhança com os dias atuais não é mera coincidência.

Histórias reais sobre a Captura, o Galinha e sua atuação brutal no oeste paulista inspiraram o jornalista e escritor Fred Di Giacomo Rocha na construção de “Gambé”, seu segundo romance, recém-lançado pela Companhia das Letras.

O livro nasceu de uma costela de seu romance de estreia, “Desamparo”, da editora Reformatório, finalista do Prêmio São Paulo de Literatura. Com ele, compartilha alguns personagens e o mesmo cenário onde hoje fica a paulista Penápolis, cidade natal do autor.

“A primeira versão de ‘Desamparo’ tinha 350 páginas, e o editor cortou 25% da história. Um dos trechos tratava da Captura, e eu já havia pesquisado sobre esse tenente psicopata, mistura de Capitão Nascimento e Bolsonaro, e objeto de um livro-reportagem muito bom, que é muito mais violento e pesado do que ‘Gambé'”, explica o autor.

“Os dois livros tratam da violência do Estado como uma força fundadora da nação brasileira”, afirma Rocha. “A violência policial sempre existiu por aqui. O Brasil foi invadido e ocupado, e foi preciso uma força policial muito eficiente para manter esse controle.”

Um retrato do Tenente Galinha, alcunha de João Antônio de Oliveira, decora ainda hoje o interior do Quartel da Luz, no centro de São Paulo, sede do 1º Batalhão da Polícia de Choque, também conhecido como Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar).

A orelha do livro afirma que a tropa de Galinha deu origem à Rota, mas a informação é contestada por historiadores ligados à PM paulista.

Ficção com pé na realidade, dotada de uma prosa poética caipira e potente, “Gambé” retrata o cotidiano hostil e brutal dos homens integrantes da Captura. Quando não estavam no interior paulista perseguindo homens, seus soldados eram usados para reprimir as agitações forjadas na capital por imigrantes espanhóis e italianos no início do século 20. No sertão, se comportavam como cangaceiros de farda.

Galinha é o antagonista do personagem que dá título ao novo livro e que integrava seu pelotão. Gambé, além de gíria usada para designar policiais, é o nome do herói partido dessa saga sertaneja, cuja trajetória e o corpo trazem as marcas da violência de um Brasil sem lei e do ódio diante da injustiça, do racismo e da pobreza extrema –temas que trazem atualidade ao enredo ambientado nos anos 1910.

Nascido em Mato Grosso, filho de pai preto e mãe branca, Gambé tinha uma “cor sem nome”. Viu seu lar ser destruído por jagunços que ameaçaram estuprar sua mãe e sua irmã de cinco anos antes de botarem fogo em tudo, a mando de um coronel local. Queria ser engenheiro porque se apaixonou pela matemática –as mãos calejadas da enxada resolvendo cálculos com a pena e o caderninho–, mas acabou virando polícia na cidade grande. Foi o que deu.

Destacado para integrar a Captura, queria caçar bandidos, sob o comando de Galinha e o motor da memória do que um dia fizeram com sua família. Participou de caçadas e de chacinas. Deu tiro e porrada. Testemunhou Galinha e soldados da tropa “derrubando virgem na capoeira e abandonando chorando no mato”, entre outras barbaridades.

Depois de 17 anos nessa vida, uma emboscada o deixa sem a mão direita, os bagos, uma orelha e um olho. Transformado em um cabra rachado, Gambé é carcomido pela raiva e pelo remorso dos tempos de sangue nos olhos.

Ferido nas suas garantias, ele encontra refúgio na amizade de um soldado novato na tropa e de um menino órfão, Caçula, que foge de um convento para acompanhar os homens de Galinha. A ele Gambé pede que chore, já que ele não consegue verter uma só lágrima por seu destino.

“O grande tema do livro, para mim, é a masculinidade, que é um tema contemporâneo”, diz Rocha. “Eu sou um homem do interior, criado entre os anos 1980 e 1990, e era muito machista. Essa coisa de homem não poder chorar era muito comum. O mundo ainda é assim, então, acho que escrever sobre isso tem algo de terapêutico.”

No livro, o autor concilia referências tão diversas quanto a poesia de Manoel de Barros e de Mano Brown, a violência dos filmes de Quentin Tarantino e a estética engajada de Glauber Rocha, os paratextos de Jorge Luis Borges e o lirismo regionalista de Guimarães Rosa.

Cheio de reviravoltas e bangue-bangues, Rocha confunde o leitor entre a história, a ficção e a biografia de um Brasil que pode ser passado, presente ou futuro, ou os três ao mesmo tempo.

GAMBÉ

Preço: R$ 64,90 (200 págs.); R$ 34,90 (ebook)

Autoria: Fred Di Giacomo Rocha

Editora: Companhia das Letras

FERNANDA MENA / Folhapress

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