SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A tese do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a responsabilização de veículos jornalísticos por falas de entrevistados abre debate sobre se há um contrafluxo da cúpula do Judiciário no entendimento sobre liberdade de expressão e de imprensa.
A reputação da corte como defensora de uma visão ampla da liberdade de expressão havia se consolidado após um período de julgamentos de visibilidade. Entre eles, a derrubada da Lei de Imprensa da ditadura militar, em 2009, e a liberação de biografias não autorizadas, em 2015 –tema que fez a ministra Cármen Lúcia afirmar em sessão: “Cala a boca já morreu”.
Essa imagem começou a mudar nos últimos anos, em decisões tomadas em meio aos ataques do bolsonarismo à corte e à democracia e ao crescimento das redes sociais.
A mais recente dessas decisões, aprovada na última quarta (29), tratou de uma tese geral sobre a possibilidade de responsabilização de veículos de imprensa quando houver “indícios concretos da falsidade” de imputação feita por entrevistado de crime a alguém.
A regra fala ainda em possível remoção de conteúdo e sanção “por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”.
Há outras em série. Em 2019, o ministro Alexandre de Moraes determinou que os sites da revista Crusoé e de O Antagonista retirassem do ar reportagem sobre o então presidente da corte, Dias Toffoli. A decisão foi parte do controverso e, à época, recém-instaurado inquérito das fake news.
Meses antes, na corrida eleitoral de 2018, o ministro Luiz Fux proibiu o então ex-presidente Lula (PT) de conceder entrevista à Folha de S.Paulo na prisão. Determinou ainda que, se ela já tivesse sido realizada, sua divulgação estaria censurada.
Em outra frente, multiplicam-se os casos de suspensões de perfis e contas em redes sociais no STF, em geral, por decisões de Moraes. O plenário da corte chegou a se debruçar e ratificou, por exemplo, o bloqueio dos perfis do PCO (Partido da Causa Operária) em uma petição.
Por sua vez, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), presidido por Moraes desde o ano passado, passou a atuar de modo mais intensivo e determinou a remoção de conteúdo que considerou “substancialmente manipulados” ou “gravemente descontextualizados sobre candidatos”.
Conteúdos jornalísticos foram removidos, e um documentário da produtora Brasil Paralelo teve sua divulgação proibida até a eleição.
A corte eleitoral referendou, por exemplo, a remoção de vídeo da Jovem Pan com entrevista da senadora Mara Gabrilli, então candidata à Vice-Presidência, relacionando Lula ao caso do assassinato do ex-prefeito de Santo André Celso Daniel em 2002. Em seu voto, Moraes afirmou que houve uma “instrumentalização reiterada da mídia tradicional para propagação de desinformação”.
Ele também determinou a remoção de vídeos, por parte da campanha petista, associando a pedofilia a uma fala do então presidente Jair Bolsonaro (PL) de que “pintou um clima” entre ele e adolescentes venezuelanas.
Além disso, a dez dias do segundo turno, o TSE concedeu a si próprio poderes amplos para sua atuação na regulação do discurso eleitoral.
Questionada pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, no Supremo, a resolução foi usada pela corte para derrubada de grupos defendendo golpe militar e bloqueio de perfis, inclusive de parlamentares espalhando desinformação sobre as urnas, isso sem ser provocada.
Essa atuação proativa se deu em meio a críticas de omissão do Ministério Público Eleitoral.
Para Miguel Godoy, professor de direito constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e da UnB (Universidade de Brasília), há um movimento de contrafluxo do STF, indo na direção oposta ao posicionamento que, a seu ver, sempre reconheceu um privilegiado lugar à liberdade de expressão.
Ele cita como exemplo diversas reclamações em que a corte decidiu contrariamente à censura da imprensa.
“Parece-me que o Supremo mira com a afirmação da tese de responsabilização dos veículos de mídia aqueles que se destinam a propalar falsas acusações, ataques sabidamente mentirosos, contra pessoas e instituições”, diz. “Todavia, o Supremo parece ter mirado no carteiro, ao invés de ter restringido a carta.”
Para Marcelo Malheiros Cerqueira, mestre e doutorando pela Universidade de Sevilha, embora os ministros do STF continuem a escrever que a liberdade de expressão tem “posição preferencial” em relação a outros direitos, importando expressão americana, na prática isso não tem acontecido.
A decisão recente seria exemplar nesse sentido, uma vez que, nos Estados Unidos, para provar difamação, é necessário comprovar má-fé de quem divulgou a afirmação. Já no caso brasileiro, a tese de repercussão geral abre espaço à punição por mera negligência.
Autor de “Censura, Justiça e Regulação da Mídia na Redemocratização” (Appris, 2022), Ivan Paganotti, professor da Universidade Metodista de São Paulo, avalia que a imagem de uma ruptura na orientação do STF é mais uma questão de percepção.
Segundo ele, desde a virada do milênio o STF manteve posição contra a censura prévia, mas nunca deixou de abrir espaço para a responsabilização depois da publicação, nem mesmo na decisão sobre biografias.
O tribunal também demonstrou sempre preocupação grande com a proteção da honra em processos movidos por indivíduos, afirma. “O grande elemento de mudança é que, nos últimos anos, o STF passou a ser alvo de crítica e a se preocupar com a reputação de ministros e familiares”, diz.
Avaliação semelhante tem o professor da PUC-Rio Fábio Carvalho Leite. “Não há uma preocupação em avançar na proteção da liberdade de expressão, garantindo direito a ofensa, estabelecendo até que ponto é garantida manifestação crítica.”
Clara Iglesias Keller, líder de pesquisa em tecnologia, poder e dominação no Weizenbaum Institute de Berlim, considera a decisão sobre responsabilização que fala em “dever de cuidado” destoa da tendência estabelecida pelo STF ao derrubar a Lei de Imprensa. Diz, no entanto, que apenas a partir dela não é possível dizer que a corte vá inaugurar algum tipo de entendimento contrário ao que vinha aplicando.
Ela aponta ainda que a centralidade que o Judiciário ganhou no combate à desinformação tornou essa pauta muito próxima dos ministros.
“Não acho irrazoável a gente pensar que isso vem influenciando também o pensamento e a interpretação que eles fazem da liberdade de expressão em contextos além da desinformação digital ou da desinformação eleitoral”, diz.
Clarissa Maia, advogada eleitoral e doutora em direito constitucional, destaca, quanto à atuação do TSE, que não é possível usar o mesmo padrão de análise para o processo eleitoral em relação à liberdade de expressão. “Não se protege a honra do candidato, mas o processo eleitoral em si.”
Ela avalia que o TSE vem fortalecendo uma posição de restringir conteúdos sabidamente inverídicos de modo mais veemente desde 2019, adotando a mesma posição em relação à violência de gênero e ao discurso de ódio.
ANGELA PINHO E RENATA GALF / Folhapress