Maria Callas, que faria cem anos, é fantasma em mostra que evoca beleza e tragédia

MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Nascida em Nova York e morta em Paris, a soprano Maria Callas viveu o auge da sua carreira em Milão, no palco do Teatro alla Scala. Na casa de ópera mais prestigiosa da Itália, a artista estrelou 25 espetáculos entre 1950 e 1962, entre eles “I Vespri Siciliani” e “La Traviata”, de Giuseppe Verdi, “Norma”, de Vincenzo Bellini, e “Medea”, de Luigi Cherubini.

Foi em Milão, onde viveu por cerca de dez anos, que ganhou força o apelido “la divina”. Pela voz e capacidade de interpretação, mas também devido ao seu estilo majestoso que se mesclava com o ar “frizzante” da cidade, em pleno boom econômico do pós-guerra. Efervescência cultural, na moda e no design, rodas sociais cada vez mais glamourosas –foi nesse ambiente que ela se transformou em mito.

Vários são os eventos em Milão que, desde novembro, comemoram o centenário de nascimento de Callas, no dia 2 de dezembro. Além de lançamentos de livros, projeções de filmes e noites líricas, duas mostras são o carro-chefe da programação.

A principal delas está em cartaz até abril no museu do Scala, ao lado do teatro. Com a intenção de fugir do formato tradicional que marca as exposições organizadas ali, baseadas em itens do acervo, como peças de figurino e fotos antigas, a direção foi atrás de um olhar contemporâneo, conferido ao curador Francesco Stocchi.

Mais acostumado a mostras de artes visuais –como a Bienal de São Paulo de 2021, da qual foi da equipe curatorial–, do que ao universo operístico, Stocchi quis trazer Callas, ou a ideia que se possa ter dela, para o presente. Cinco profissionais de áreas diferentes foram convidados, então, a resumir em uma obra o que a soprano representa.

Logo na entrada, em uma sala quase inteiramente escura e com cinco caixas de som, o músico Alvin Curran mostra sua composição de 33 minutos feita a partir de fragmentos da voz de Callas, tons altos e baixos de poucos segundos. Tratados digitalmente em processos de dilatação e transposição, os trechos viraram uma peça sonora em que fases melódicas abstratas se alternam a momentos de ápice, quase gritos.

Em seguida, a atmosfera etérea se mantém na instalação de Latifa Echakhch, que produziu uma coluna de fios de náilon com miçangas brancas e vermelhas. No fundo preto e sob iluminação precisa, a impressão é de um vulto com manchas de sangue.

Se aqui a ideia de aparição é sugerida, no espaço de Giorgio Armani ela ganha contornos bem delineados, reforçados pela arquitetura cenográfica de Margherita Palli. Para a sua Callas, o estilista escolheu um vestido longo de seda, um tomara-que-caia vermelho magenta, que, sobre o manequim preto e em ambiente escuro, parece encarnar a soprano.

Juntos, os três trabalhos são os que mais remetem ao título da mostra –“Fantasmagoria Callas”. “A ideia não era fazer uma lembrança de quem foi Callas, mas uma evocação. Evocar é diferente, é mais ativo, é trazer de volta a ideia que cada um tem dela”, diz Stocchi.

Em dois momentos mais literais, Francesco Vezzoli exibe 63 retratos de Callas, com bordados metálicos em azul, em referência às interpretações que a artista fez de “La Traviata”. Enquanto o diretor Mario Martone conduz um curta-metragem com texto de Ingeborg Bachmann, escrito após a poeta ver Callas no palco do Scala, em 1956.

No conjunto, sobressai a grandiosidade da artista, mas um tanto de dor também transparece dessas evocações. “Não se tratava de tornar bonita uma história. A dor está ali porque Callas foi uma figura rica e complexa. Foi uma perfeccionista que ousou e errou, mas nunca foi medíocre. Teve uma vida trágica, com dramas de vários tipos”, afirma o curador.

Ao sair do Scala e atravessar a rua, outra exposição ilustra essa trajetória parabólica. Na Gallerie d’Italia, em cartaz até fevereiro, 91 fotografias mostram Callas em situações fora do palco. Muitas inéditas, são parte do arquivo da antiga agência de fotojornalismo Publifoto.

Considerada a primeira cantora lírica a se tornar uma celebridade popular, Callas teve a carreira acompanhada por fotógrafos, seja posando, seja em flagras de paparazzi. Na seleção, tem a soprano jantando entre amigos em restaurantes badalados, chegando e partindo de trens e aviões, provando vestidos no atelier Biki, posando com o marido em sua casa milanesa, escancarando o romance com Aristóteles Onassis, a bordo de iates, se divorciando no tribunal.

Exibidas de forma cronológica, a primeira e a última imagens foram retratadas no espaço que a consagrou –o Teatro alla Scala. Na foto de 1954, ela conversa, durante um ensaio, com maestros, entre eles Arturo Toscanini. Em 1970, está ali como plateia.

Como a própria Callas definiu, sua relação com o teatro milanês foi um casamento feliz. “Se tornar e se manter célebre no Scala é uma coroação. Para mim, o Scala significou poder dar o meu melhor. Naquele tempo, os artistas buscavam o melhor e recebiam de volta o melhor. Foi um casamento muito feliz”, disse, em entrevista gravada pouco antes de morrer, em 1977.

MICHELE OLIVEIRA / Folhapress

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