SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As mortes causadas por policiais aumentaram em 16 estados no primeiro semestre de 2023, em comparação com o mesmo período do ano passado. Os números vão na contramão da média brasileira, onde houve queda de 3,7%.
Os maiores aumentos foram registrados em Mato Grosso do Sul (340%), Santa Catarina (115%) e Distrito Federal (114,3%). Em São Paulo, as mortes causadas por agentes subiram 8,3%, sem contar com ao menos 28 mortes na Operação Escudo no litoral paulista, conduzida entre o fim de julho e o começo de setembro. O estado foi um dos que destoaram da média do Sudeste, que teve redução de 8,7%.
Já as maiores quedas foram verificadas em Maranhão (-48,8%), Paraná (-40,6%) e Amazonas (-38,8%). Também houve reduções na Bahia e no Rio de Janeiro, que lideraram a quantidade de mortos em 2022.
A Folha de S.Paulo teve acesso com exclusividade aos dados recolhidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio de pedidos de Lei de Acesso à Informação feitos aos estados e ao Distrito Federal.
Outro indicador usado para avaliar o uso da força policial é a proporção das mortes por intervenção do estado em comparação com crimes violentos intencionais (CVLI). Esse índice corresponde à soma de homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Isso significa que, comparadas às 529 mortes por crimes violentos intencionais em Goiás no primeiro semestre do ano, as mortes por intervenção policial representaram mais da metade dessa quantidade (57,5%), com 304 vítimas.
Essas proporções aumentaram no primeiro semestre deste ano em quase todos os estados que registraram alta de letalidade policial, com exceção de Amapá e Espírito Santo. Goiás (57%), Amapá (53,7%) e Sergipe (45,1%) lideram em proporção neste ano.
O número é considerado muito alto, segundo Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É um indicador usado internacionalmente para medir o uso da força. Alguns estudos apontam que, se esse índice passa dos 10%, há uso excessivo dessa força.”
Outro indício de excessos, diz ela, é quando essa proporção tem altas maiores do que as de crimes violentos, ou quando crescem em meio a uma queda desses crimes.
As variações da letalidade exigem análises específicas sobre os contextos locais, diz a especialista, que sugere hipóteses para os casos de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso: os conflitos entre CV (Comando Vermelho) e PCC (Primeiro Comando da Capital) nas disputas por rotas de tráfico de drogas.
Mato Grosso, governado por Mauro Mendes (União Brasil), faz fronteira com a Bolívia, importante produtor de cocaína; e Mato Grosso do Sul, governado por Eduardo Riedel (PSDB), com a Bolívia e o Paraguai, que também envia maconha ao Brasil. “Parte da cocaína entra por Mato Grosso e vai em direção ao Pará pela rota do rio Solimões. Dali, vai para algum porto, no Pará ou no Amapá, para o envio da droga para fora do país.”
Uma região mais conflagrada, afirma, poderia indicar mais situações de confronto envolvendo a polícia.
Ainda sobre a proporção, Samira afirma que o caso de Minas Gerais ajuda a ilustrar comportamentos históricos. “Um estado gigantesco no Sudeste, em que essas mortes representam 4% do total de assassinatos, tem esse padrão histórico nas polícias.”
Estados com as polícias líderes em letalidade, Bahia e Rio de Janeiro registraram queda. A polícia baiana matou 743 pessoas de janeiro a junho deste ano, o que representa uma redução de 8,4% na comparação com o primeiro semestre do ano passado.
Apesar disso, o número cresceu 13,6% em relação ao segundo semestre de 2022, o que indica que a tendência do ano pode ser de alta. O governo Jerônimo Rodrigues (PT) enfrenta uma crise de segurança com desdobramentos há anos e episódios repetidos de violência policial e guerra entre facções criminosas.
Os números no Rio ficaram abaixo dos dois períodos anteriores. Foram 649 mortes, 12% a menos em relação ao primeiro semestre de 2022 e 16,1% a menos do que no segundo.
O estado, contudo, tem uma média de três chacinas policiais por mês, segundo levantamento recente do Instituto Fogo Cruzado. Embora não haja definição legal sobre o termo, há consenso entre especialistas para considerar chacinas as ações com três ou mais mortos.
Ainda, as forças policiais da gestão Cláudio Castro (PL) diminuíram a proporção em relação às mortes por CVLI, caindo de 42,5% para 31,9%. A marca continua na casa de um terço das mortes violentas ocorridas na região metropolitana da capital entre 2007 e 2022, segundo estudo do Geni (Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense).
As câmeras corporais em uso, medida apontada como parte importante de programas de redução de letalidade, haviam chegado a cerca de 9.500 unidades até setembro, e o governo enviou ao Supremo Tribunal Federal no começo do ano um plano para reduzir as mortes causadas por agentes.
Em São Paulo, o crescimento de 8,3% das mortes causadas por policiais no primeiro semestre foi acrescido de novos aumentos já no mês seguinte, com ao menos 28 mortos em ações da Operação Escudo no litoral paulista.
O episódio foi um dos marcos da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) na segurança pública, chefiada por Guilherme Derrite. O governo já retirou recursos do programa de câmeras em mais de uma ocasião sob a justificativa de pagar despesas urgentes e declarou que não haveria prejuízos aos contratos vigentes de câmeras.
O governador também afirmou, no fim de outubro, que não tinha planos de comprar mais câmeras para a Polícia Militar. Ainda, o governo descontinuou a segunda edição de um estudo científico que tinha avaliado o impacto das câmeras corporais no comportamento de policiais militares em São Paulo.
Para Bueno, do Fórum, as ações indicam o posicionamento do governo sobre programas de redução da letalidade.
“Não vejo incoerência em relação a essa política. Ainda existem as câmeras, mas a Operação Escudo mostrou a fragilidade de como isso vem sendo implementado. Uma operação com tantos policiais não ter imagens ou filmagens em metade das mortes?”
O QUE DIZEM OS ESTADOS
A reportagem entrou na última sexta (1º) em contato com os 16 estados que registraram aumento na letalidade policial no primeiro semestre para saber os motivos possíveis para a alta e as medidas para redução. Recebeu, até a publicação, a resposta de seis.
A Secretaria da Segurança Pública de Santa Catarina afirmou, em nota, que suas polícias são doutrinadas para uso moderado e progressivo da força. A pasta da gestão Jorginho Mello (PL) ainda que registrou confrontos de facções, concentrados no norte do estado, no começo do ano.
Já a secretaria do Distrito Federal destacou que registrou a menor taxa de letalidade policial do país em 2022. Neste ano, foram 15 mortos entre janeiro e junho, contra 7 no mesmo período de 2022, segundo o governo Ibaneis Rocha (MDB).
Em Mato Grosso, o governo Mauro Mendes (União Brasil) afirma que as forças de segurança reforçaram as atividades ostensivas e repressivas para combater organizações criminosas, o que gerou mais confronto em razão da resistência dos criminosos à ação policial. Também diz que os policiais cumprem procedimentos operacionais padronizados e passam por cursos de capacitação.
A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo diz investir no treinamento das forças de segurança e em políticas públicas para reduzir as mortes em confronto, com o aprimoramento nos cursos e aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, entre outras ações. “Os números de mortes decorrente de intervenção policial (MDIP) indicam que a causa não é a atuação da polícia, mas sim a ação dos criminosos que optam pelo confronto, colocando em risco tanto a população quanto os participantes da ação”, declara a gestão Tarcísio de Freitas.
A Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Espírito Santo declara que as operações policiais são feitas dentro da legalidade. “Entretanto, quando há agressão contra os policiais, estes respondem proporcionalmente”, afirma. O governo Renato Casagrande (PSB) ressalta que o estado apresenta um índice de letalidade policial abaixo da média nacional.
O governo do Ceará disse, em nota, que os profissionais de segurança pública participam de formações com protocolos humanizados de atendimento a ocorrências, e que são orientados a atuar seguindo portaria de 2010 do Ministério de Justiça e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República que disciplina o uso progressivo da força. A gestão Elmano de Freitas (PT) afirma contar, ainda, com uma corregedoria-geral para segurança pública e sistema penitenciário.
LUCAS LACERDA / Folhapress