SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dez anos depois da morte de Nelson Mandela, estátuas continuam a ser erguidas em sua homenagem na África do Sul.
Em julho foram logo duas, na região de Qunu, vilarejo onde nasceu e foi enterrado: uma com terno e gravata, como chefe de Estado, e outra com trajes ancestrais, como líder tribal.
“Essas estátuas deveriam servir como um lembrete para nós, que fomos eleitos para servir ao povo sul-africano, de que precisamos redobrar nossos esforços para construir uma África do Sul melhor, que não deixa ninguém para trás”, discursou na ocasião o presidente Cyril Ramaphosa.
Impopular, ele poderia estar dando um recado a si próprio. Pela primeira vez desde o fim do apartheid, em 1994, o Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Mandela e do atual presidente, corre sério risco de ser derrotado, em eleições no ano que vem.
Se Mandela andasse pelas metrópoles, zonas rurais e townships (favelas) sul-africanas hoje, veria um país bastante distante da “nação arco-íris” que idealizou, em que a tônica era da harmonia racial.
Desde sua morte aos 95 anos, em 5 de dezembro de 2013, houve avanços em alguns indicadores sociais, mas uma deterioração acentuada na economia. Mais grave, os índices de violência, conflitos tribais e xenofobia explodiram em uma década.
“Já havia um declínio do país antes da morte dele, que agora piorou e se tornou exponencial, em todos os níveis. A sociedade se tornou mais tribal, as pessoas se fecharam em suas comunidades e grupos étnicos”, diz William Gumede, professor de Governança na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, e autor de diversos livros sobre Mandela e o CNA.
Esse efeito manifestou-se, por exemplo, em uma onda de protestos em 2021 por causa da prisão do ex-presidente Jacob Zuma, um zulu, maior etnia do país. Também ocorre esporadicamente em manifestações xenofóbicas, direcionadas a trabalhadores de outros países africanos.
Um partido abertamente anti-imigração, o Action SA, surgiu em 2020 e conquistou 90 cadeiras de vereador em eleições municipais no ano seguinte. Nacionalmente, teve apenas 2,34% dos votos, mas introduziu no cenário político sul-africano a semente de uma plataforma de direita radical.
Como em toda crise social, o substrato é econômico. O desemprego hoje é de 31,9%, maior do que o já alto índice de 24,1% na morte de Mandela. Entre jovens, passa de 50%.
Mais impressionante é o encolhimento do país em dez anos. Seu PIB era de US$ 401 bilhões em 2013, contra US$ 381 bilhões atualmente, um declínio de 4,9%. Isso num contexto de crescimento populacional de cerca de 20% no período.
Sempre um problema persistente na África do Sul, a violência voltou a crescer após ter declinado acentuadamente na primeira década deste século. Em 2023, 27.494 pessoas foram assassinadas de janeiro até novembro, um recorde, e aumento de 61,5% sobre 2013.
Na área social, alguns indicadores trazem alento ao quadro geral e darão certo fôlego ao governo para tentar se manter no poder no ano que vem.
A escolarização de crianças de 5 anos de idade aumentou, e hoje está perto da universalização. Também houve avanços no índice de pessoas vivendo em casas formais e no acesso a água encanada e eletricidade (apesar dos frequentes blecautes).
Eles não alteram, no entanto, o quadro geral de desesperança, mostrado por uma pesquisa de 2022 do Human Sciences Research Council, um instituto de pesquisa local.
Em 2004, 63% dos sul-africanos estavam satisfeitos com a democracia. Dez anos depois, logo após a morte de Mandela, o índice havia despencado para 37%. Já em 2021, dado mais recente, recuou ainda mais, para apenas 26%, contra 50% de insatisfeitos.
Embora ainda seja considerado o “pai da nação” pela maioria da população, Mandela não tem sido poupado de críticas sobretudo pelos mais jovens, que não viveram o regime do apartheid.
Aos olhos dessa geração, o pecado do líder seria justamente a característica que o levou a ser idolatrado globalmente em vida, a capacidade de estender a mão aos antigos opressores.
“Muitos dizem que Mandela acomodou demais os interesses dos brancos na transição para a democracia racial, que deveria ter sido menos conciliador, e que agora estamos pagando o preço dessa atitude”, diz Gumede. “Não veem que o problema está no fato de o governo ter falhado nos últimos anos em administrar o país de maneira correta.”
Faltando menos de seis meses para a eleição, o CNA se vê no limiar de baixar pela primeira vez do patamar de 50% dos votos, o que o obrigaria a governar em coalizão.
O partido se vê acossado à esquerda por uma legenda popular entre a juventude desempregada, os Guerreiros da Liberdade Econômica, e ao centro pela Aliança Democrática, que tem adesão entre as minorias branca e de mestiços e construiu uma reputação de eficiência em governos locais que administra.
Sem muito a mostrar no presente, resta ao CNA buscar força eleitoral em sua história, que se confunde com a de Mandela. “A campanha vai usar muito a imagem de Mandela. Ainda é um ativo importante, embora não tão grande como no passado”, diz Gumede.
FÁBIO ZANINI / Folhapress