SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A história da ópera está no olhar de Maria Callas. Seu rosto tem a qualidade de uma máscara grega. Os lábios carnudos e os cabelos pretos compõem os traços definitivos de Medeia, a feiticeira do amor, tantas vezes interpretada pela soprano, que completaria cem anos neste mês. A obra de Luigi Cherubini, estreada em 1797, recria a tragédia de Eurípedes, inspirada no mito de uma mulher que mata os próprios filhos para vingar a traição do marido.
No derradeiro ato, trovões ribombam e raios rugem. A natureza anuncia a carnificina. Callas ateava fogo no palco, repetindo a tragédia como se fosse a sua sina. Parecia mesmo não haver diferenças entre a sua tragédia e a da personagem. Ela confirmaria a impressão, em 1969, interpretando a feiticeira no filme de Pier Paolo Pasolini.
Passado tanto tempo, seu legado é lembrado em um concerto no Theatro Municipal de São Paulo e sua imagem ainda sofre um processo de mitificação. Na internet, centenas de biografias prometem desvendar a mulher por trás do mito. O cinema fetichiza a artista, produzindo cinebiografias, como a de Pablo Larraín, ainda sem data de lançamento, com Angelina Jolie.
De todo modo, o início da obsessão remonta aos anos gloriosos da cantora. O diretor cênico André Heller Lopes, único brasileiro a ter encenado a obra de Cherubini, lembra que Callas surge nos anos 1950, década em que a mídia e a indústria da propaganda se consolidam como as forças ordenadoras do debate público.
Rompendo a separação entre o público e o privado, a indústria de massa encontrou sua matéria-prima nas casas de ópera, que reproduziam em seu interior a estratificação das classes sociais. Perseguida pelos paparazzi, La Divina, como Callas era chamada, tinha a imagem estampada em todas as revistas e sua vida era discutida em programas de rádio.
Assim, a soprano se tornava assunto, mesmo para quem não frequentava a temporada lírica. “O mundo precisava de esperança, então a sociedade do século 20 abraçava mitos como Callas”, diz Heller-Lopes. Não se nega a violência da indústria de massa, mas a carreira da artista se beneficiou do avanço da tecnologia. Ao contrário de outras sopranos, Callas pôde eternizar a sua voz em gravações.
Mas nenhum mito sobreviveria à era do streaming sem que um gênio o sustentasse. A impressionante extensão vocal da cantora, que no final da vida interpretou papéis destinados a mezzo-sopranos, resultava em uma habilidade de encarnar personagens díspares, o que talvez tenha a ver com o desterro de sua vida.
O nome artístico Callas vem de Maria Sophia Cecilia Anna Kalogeropoulos. Embora sua família seja grega, a cantora nasce em Nova York, nos Estados Unidos. Com o divórcio dos pais, ela vai, aos 14 anos, para a Grécia, onde estuda canto na Real Academia de Música. Desde sempre, sua mãe, Evangelia, se comporta como incentivadora da carreira artística, ao mesmo tempo que pune a filha com um rigor doentio.
Nos primeiros anos da carreira, Callas recebe da mãe uma lição perversa, que a acompanharia durante toda a vida. Para se destacar entre as cantoras, deveria priorizar a carreira e abrir mão da sua intimidade.
Em 1949, a mãe incentiva o casamento com Giovanni Meneghini, um homem rico e 30 anos mais velho. Meneghini se torna empresário da artista, explorando o seu talento e aplicando golpes nos contratantes. Juntos, o casal conquista os principais teatros do mundo, o Alla Scala, de Milão, o Metropolitan, de Nova York, e a Ópera de Paris.
Callas frequentava o “grand monde”. No verão de 1959, ela embarca, ao lado de Meneghini, no Christina, iate do magnata Aristóteles Onassis, que tinha a companhia de sua mulher Athina Livanos. Na viagem, Athina descobre que o marido a traía com Callas. Aos prantos, a soprano diz a Meneghini que ama Onassis. Então, ela larga o milionário para viver com o bilionário, seu ideal grego.
A bordo do Christina, o único que parecia não se importar com a tensão era Winston Churchill, ex-primeiro-ministro do Reino Unido. O triângulo amoroso provocaria um escândalo internacional. Vivendo com Onassis, Callas deixa a carreira em segundo plano. Tempos depois, descobre que o empresário a traíra com Jacqueline Kennedy, a ex-primeira dama dos Estados Unidos, com quem se casa.
Sozinha e sem filhos, Callas entra em depressão. Pouco a pouco, ela perde a voz e se afunda em barbitúricos. Morre, em Paris, no ano de 1977, vítima de uma parada cardíaca.
Há uma correspondência entre a sua infelicidade e a revolução que provocou no mundo das artes cênicas. Desde o século 16, os pensadores da ópera buscam equalizar música, teatro e artes plásticas. A intervenção de Callas não foi diferente, mas deu um passo além.
Até a época de Callas, a plateia ia ao teatro lírico para ouvir a música. Muitos ficavam de olhos fechados. Callas abre os olhos da multidão com a ajuda do diretor Luchino Visconti, por quem tem uma paixão não correspondida. O autor de “O Leopardo” era gay.
Callas equipara a interpretação cênica ao desempenho vocal das cantoras. Deixa a ópera com cara de tragédia, como a sua própria vida. Assim, ela volta ao fundamento dos idealizadores da linguagem operística da Camerata Fiorentina, que se inspiraram na antiguidade clássica.
Tanto que, antes das récitas de “Medeia”, Callas se ajoelhava e batia no chão, para evocar os deuses. Com Visconti, a soprano monta em 1954 a ópera “La Vestale”, de Gaspare Spontini, no La Scala. Em cena, Callas mostra a sua força cênica no cenário do diretor, que reproduzia no palco a Roma Imperial.
Mais tarde, ela se tornaria parceira de Franco Zefirelli, outro diretor de teatro de prosa (e posteriormente também de cinema), com quem protagoniza montagens clássicas, como “Norma”, de Vincenzo Bellini, na Ópera de Paris. “O mais impressionante era que o sentido teatral de Callas não se expandia em gestos, mas estava concentrado na voz”, afirma a diretora cênica Livia Sabag.
“Casta Diva”, a principal ária de “Norma”, se tornou um clássico na voz da cantora. Não à toa, a mesma ária abre o “Tributo a Maria Callas”, em cartaz no Municipal, com as sopranos Eiko Senda, Rosana Lamosa e Camila Provenzale. “Casta Diva” é um exemplo desse “pathos” que define as interpretações da cantora.
Sua voz não busca a matemática do que chamava de “má tradição italiana”, mas o arrebatamento. “Nenhuma estudante de canto lírico, atualmente, abre a boca se não tiver estudado a sua personagem, o que é uma herança da Callas”, diz Lamosa.
No tributo, as cantoras interpretam o repertório consagrado pela Divina, como a ária “Al Dolce Guidami”, de “Anna Bolena”, ópera de Gaetano Donizetti, e “Tu Che Invoco con Orrore, daquela ópera “La Vestale”. Em sua revolução, Callas resgata o repertório do bel canto técnica vocal que surge na Itália no século 18, um tanto esquecido em sua época.
O concerto traz ainda dois clássicos de Giacomo Puccini: “Un Bel di Vedremo”, de “Madame Butterfly”, e “Vissi dArte”, de “Tosca”. Ao século 21, a imagem mitificada da soprano ganha interpretações políticas. O debate se inflamou, há dois anos, com o lançamento da biografia “Cast a Diva The Hidden Life of Maria Callas”.
A autora irlandesa Lindsy Spence trata a artista como um símbolo feminista e revela, a partir de sua correspondência epistolar, que Onassis dopava a mulher e a abusava sexualmente. Não há dúvidas sobre o contexto machista enfrentado pela cantora, que foi boicotada pelos poderosos do mundo lírico para implementar seu projeto artístico.
Contudo, algumas passagens de sua vida mostram que Callas viveu de acordo com o padrão comportamental de sua época. “Não a vejo completamente como feminista”, afirma Senda. “Era uma mulher muito forte, mas dependia emocionalmente dos seus maridos.”
Seu temperamento era explosivo. Para ficarmos em um ataque de diva, Callas arremessou um tinteiro no diretor do Municipal do Rio de Janeiro, quando cantou no teatro, nos anos 1950. Ao mesmo tempo, sempre foi refém de um padrão de beleza, simbolizado pela atriz Audrey Hepburn.
Callas se submetia a dietas terríveis para alcançar seu ideal estético. Ela encarnou o papel de diva, agora banalizado pela indústria cultural, e se tornou um modelo para os costureiros do século 20, como Christian Dior. Para Heller-Lopes, Callas é sobretudo um símbolo para os gays. “O público gay se identifica com a vida trágica de Maria Callas, porque sente a mesma dificuldade de expressão enfrentada por ela”, diz.
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress