SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Discutida como forma de abatimento da dívida de Minas Gerais com a União, a federalização da Cemig não seria inédita no país.
Ainda no final da década de 1990, o governo FHC incentivou os estados a privatizarem suas distribuidoras a grande maioria endividada. Em alguns casos, a União incorporou as companhias pela Eletrobras com o objetivo de melhorar suas contas e vendê-las logo em seguida.
Seis delas, porém, acabaram não sendo vendidas por motivos políticos ou econômicos e ficaram sob o guarda-chuva da Eletrobras por 21 anos, até o final do governo Michel Temer (MDB).
Durante esse período, de acordo com analistas ouvidos pela reportagem, as seis distribuidoras foram deixadas de lado pela gestão da Eletrobras que à época era controlada majoritariamente pelo governo federal.
“A Eletrobras é a maior empresa do setor elétrico, mas o foco dela é em geração e transmissão. Então, essas distribuidoras passaram todo esse período não tendo uma grande atenção do controlador”, afirma o consultor Renan Muller. Ele é mestre em engenharia de produção pela USP (Universidade de São Paulo) e autor de um estudo sobre o tema.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) se reunirá com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na quinta-feira (7), em Brasília, para discutir a federalização da Cemig.
O senador é o idealizador da proposta, uma alternativa ao programa de recuperação fiscal apresentado pelo governo Romeu Zema (Novo) para abater a dívida de R$ 161 bilhões do estado com a União. A proposta de Zema prevê, entre vários pontos, limites ao aumento de salários de servidores públicos, o que complica a aprovação do texto na Assembleia Legislativa.
À reportagem Pacheco disse por meio de nota que a federalização da Cemig não deve ser feita pela Eletrobras, hoje privatizada e fora do controle do governo federal embora, ao menos em teoria, especialistas descrevam formas de a União retomar o controle da empresa, utilizando a distribuidora mineira.
Segundo o senador, a federalização pode acontecer por meio do controle direto da empresa pela União ou pela aquisição por meio de outras empresas públicas gestoras de ativos. A Emgea (Empresa Gestora de Ativos), ligada ao Ministério da Fazenda, por exemplo, é presidida pelo ex-governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT).
Há também a possibilidade de a federalização ocorrer por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).
Enquanto não se define o modelo de federalização da Cemig, agentes do setor de energia descrevem problemas em casos anteriores. Em Teresina, Francisco Marques, presidente do sindicato dos urbanitários do estado, lembra como a Cepisa (Companhia Energética do Piauí) operava enquanto era federalizada.
“A Eletrobras tratava a Cepisa como temporária e não investia muito na empresa, o que fez com que os indicadores fossem piorando muito. Na época, eu conversei com Edison Lobão [ministro de Minas e Energia entre 2008 e 2015), e ele concordou. A Eletrobras não tinha política eficiente para essas empresas, porque não era o plano delas”, afirma.
Ao contrário da Cemig, porém, a Cepisa não tinha acionistas privados.
O estudo de Muller aponta que, entre 2010 e 2019, a Cepisa teve indicadores abaixo do limite estipulado pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica). O DEC (indicador que mede o tempo que cada unidade consumidora ficou sem energia elétrica) da empresa estava 28% acima do estipulado pela agência.
Já o FER (que mede a frequência de reclamações de consumidores das distribuidoras) ficou 15% maior do que o limite. O único indicador que cumpriu a meta foi o FEC (que mede o número de interrupções ocorridas no período de observação).
Em comparação, nesse mesmo período, a Cemig só não conseguiu cumprir o DEC e mesmo assim por 2%. Já as outras empresas federalizadas também não conseguiram cumprir vários desses indicadores.
O estudo também mediu a margem Ebitda das empresas (proporção do lucro operacional antes de despesas financeiras, impostos, depreciação e amortização em relação à receita líquida da empresa). Entre as estatais, apenas Cemig, Copel e Celesc tiveram resultados positivos.
“Na época da federalização , houve uma melhoria de gestão, mas não de qualidade. Entrou um quadro técnico experiente nomeado pela própria Eletrobras. Eles arrumaram a casa para a privatização, não para melhorar o serviço. Eles entraram já sabendo quando seria o fim”, diz Carlindo Lins, consultor técnico do Conselho dos Consumidores da Energisa de Rondônia, que assumiu as funções da antiga Ceron (Centrais Elétricas de Rondônia).
A situação financeira atual da Cemig é muito diferente das distribuidoras federalizadas no passado. A Cemig é a empresa mais lucrativa do governo de Minas Gerais e é considerada uma das melhores estatais do setor, o que a fez uma prioridade para todos os governadores do estado até para aqueles que defendem sua privatização, como Zema.
Se federalizada, porém, a empresa mineira não estaria nem entre as cinco estatais federais com maior lucro, o que poderia diminuir a atenção do poder público para ela.
O receio de especialistas ouvidos pela reportagem é que um eventual escanteamento da empresa na esfera federal mine o grau de investimento na distribuidora e atrapalhe diretamente seus serviços prestados.
“A Cemig é uma empresa rentável, e o problema é do estado, não da Cemig. Ou seja, o governo está dando um ativo rentável para abater uma dívida que ele foi incompetente para gerir”, diz Mariana Amim, diretora de Assuntos Técnicos e Regulatórios da Associação Nacional dos Consumidores de Energia.
A federalização proposta por Pacheco mudaria também a forma como os mineiros cobram eventuais distúrbios nos serviços da Cemig.
Hoje, a qualidade dos serviços da distribuidora é creditada ao saldo político do governador. Assim, eventuais problemas na ponta da empresa costumam ser lembrados durante as eleições. Com a federalização, porém, a cobrança teria de ser com o governo federal ou diretamente com a empresa responsável pela distribuidora.
“Para a Cemig, a federalização é uma transferência de risco de uso político do governo de Minas para o risco de uso político do governo federal. Ou seja, o risco agora estaria atrelado não ao governador, secretários e deputados estaduais que os clientes da distribuidora elegem e veem todos os dias, mas ao presidente, ministros e parlamentares federais, inclusive de outros estados”, analisa Muller.
Pacheco discorda: “Há várias formas contratuais de garantir o interesse dos mineiros. Para isso, estão em estudo condições, no contrato de alienação, de aprimoramento na prestação do serviço, da estrutura da Cemig e de cláusulas de recompra da empresa pelo estado”, diz.
PEDRO LOVISI / Folhapress