SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O regime da China tolera conteúdo contra judeus na internet e usa o antissemitismo como uma ferramenta diplomática.
A acusação parte de Aaron Keyak, vice-enviado especial dos Estados Unidos para o Monitoramento e Combate ao Antissemitismo, que esteve no Brasil para se reunir com autoridades, entre elas o senador Jaques Wagner (PT-BA), e membros da comunidade judaica.
Segundo ele, na China, “onde não há liberdade de expressão, estão permitindo que esse sentimento [antissemitismo] se desenvolva”. “Quando um país como a China e um líder como Xi Jinping acham que essa seja uma ferramenta útil em um kit diplomático, isso não é problemático só do ponto de vista multilateral ou bilateral”, afirma à reportagem.
“O maior problema de usar o antissemitismo como uma ferramenta diplomática para impulsionar seus objetivos de política externa é que os judeus acabam se machucando no final.”
Keyak, que é judeu, discorda do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que, em entrevista à Al Jazeera, falou em “genocídio contra mulheres e crianças em Gaza” cometido por Tel Aviv. “Os Estados Unidos não acreditam que esteja ocorrendo um genocídio.”
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PERGUNTA – Qual mensagem o sr. queria transmitir durante sua visita ao Brasil?
AARON KEYAK – Nos três países que visitei [Brasil, Chile e Argentina] parece não existir antissemitismo violento no mesmo nível que na Europa e na América do Norte. Mesmo aqui nesta avenida [Paulista], há protestos pró-palestinos e pró-israelenses, ambos intensos, mas não há violência.
Esse tipo de lição o mundo e os EUA podem aprender. Você pode discordar de um governo em particular, mas não faz sentido atacar um membro aleatório da comunidade judaica ou um palestino ou um muçulmano por algo que acontece no Oriente Médio.
Se você tirar isso do contexto do Oriente Médio, nunca ouviria falar de um protesto na frente de um restaurante chinês porque você discorda de como a China trata os uigures. Obviamente existem locais legítimos para protestos. Quando você vai protestar em frente a uma sinagoga ou a um restaurante de propriedade de um chef judeu, isso é uma escolha, em vez de protestar em frente a uma embaixada israelense ou palestina, que seriam lugares legítimos.
P – Uma compilação da Liga Anti-Difamação com números da Conib (Confederação Israelita do Brasil) aponta que houve 467 incidentes antissemitas no Brasil desde 7 de outubro, um aumento de 961%. Quais são suas principais preocupações?
AK – A Liga Anti-Difamação e outras organizações têm acompanhado aumentos semelhantes, se não piores, em todo o mundo. Sempre que há um conflito no Oriente Médio, inevitavelmente, há um aumento do antissemitismo. É um padrão desde a fundação do Estado de Israel. Isso ocorre porque a retórica fortemente anti-Israel pode se transformar em retórica antissemita.
P – Geograficamente, quais são as regiões que mais preocupam?
AK – Nenhum país está imune. O antissemitismo está aumentando em todos os lugares. Mas uma mudança é a China. Sempre houve uma espécie de filossemitismo [admiração por judeus] na China.
Mas vimos recentemente um aumento do antissemitismo, especialmente nas redes sociais locais. Em um país onde não há liberdade de expressão, essencialmente estão permitindo que esse sentimento se desenvolva. Por algum motivo, a China decidiu que essa retórica é útil para seus objetivos, o que é profundamente preocupante.
Quando um país como a China e um líder como Xi Jinping acham que essa seja uma ferramenta útil em um kit diplomático, isso não é problemático só do ponto de vista multilateral ou bilateral. O maior problema de usar o antissemitismo como uma ferramenta diplomática para impulsionar seus objetivos de política externa é que os judeus acabam se machucando no final. Isso faz com que eles se sintam menos seguros em todo o mundo e faz com que os antissemitas se sintam encorajados, levando a um ambiente global menos estável.
P – Qual seria o objetivo de Pequim com isso?
AK – Não posso falar por eles. O que vimos sobre o antissemitismo no contexto da Rússia podemos ver na China. Estimular o aumento do antissemitismo tem um efeito desestabilizador.
Fortalecer a teoria da conspiração de que os judeus controlam o sistema financeiro, a mídia, os políticos, leva as pessoas a acreditar que não há como responsabilizar seus governos, porque são controlados por uma força externa. Do ponto de vista de países e indivíduos que não amam a democracia, isso é atraente.
P – Até que ponto é possível ser crítico do governo de Israel sem ser antissemita? Quais seriam críticas legítimas que não implicam antissemitismo?
AK – Discordâncias de política com o Estado de Israel e com o governo de Israel são legítimas. Se chamássemos de antissemitismo críticas severas a Israel antes de 7 de outubro, estaríamos chamando de antissemitas centenas de milhares de israelenses que marcharam em Tel Aviv e eram críticos [do premiê Binyamin Netanyahu]. Não é o caso.
Os EUA usam a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, da qual o Brasil é um observador. É preciso olhar cada exemplo específico e entender no contexto. Culpar a comunidade judaica local pelas ações do governo israelense ou de qualquer governo ultrapassa a linha ou está próximo disso, dependendo do contexto. Com muita frequência, os antissemitas usam palavras como sionistas ou pró-Israel apenas como substituto para a palavra judeu. E quando você faz uma busca no seu documento e retira a menção a judeu ou judaico e substitui por sionista, israelense ou ativista pró-Israel, a essência permanece a mesma.
Não se pode simplesmente mascarar o antissemitismo.
P – Sem contestar o direito de Israel à autodefesa após os ataques terroristas, alguns críticos dizem que a maneira mais eficaz de combater o antissemitismo seria parar de matar civis em Gaza e adotar um cessar-fogo. Qual é a posição dos EUA?
AK – Quando se trata de julgar Israel por suas táticas na guerra, acho que é problemático usar padrões diferentes dos usados para outros países, apelando para dois pesos, duas medidas. Se você quer falar sobre uma questão de direitos humanos com o governo israelense, ok, vamos ter essa conversa, mas você está aplicando o mesmo padrão de direitos humanos a outros países do mundo? Não há país perfeito em direitos humanos. Se você fala sobre direitos humanos em Israel e não menciona os uigures quando está falando sobre a China, temos que analisar o motivo disso.
P – O presidente Lula condenou o que chamou de “genocídio contra mulheres e crianças em Gaza”. Como o sr. vê esse tipo de declaração?
AK – Tivemos reuniões com o Ministério das Relações Exteriores e com o senador [Jaques] Wagner [PT-BA, líder do governo no Senado]. Foi uma conversa robusta, abrangente, sobre antissemitismo e críticas a Israel. Acredito que veremos no futuro uma condenação contínua do antissemitismo. Acredito que o governo do Brasil entende que este seja um momento difícil.
P – Mas o que o sr. acha de classificar como genocídio o que ocorre em Gaza?
AK – O Departamento de Estado tem uma métrica legal para decidir o que é genocídio. Quando você fala sobre genocídio no contexto do que aconteceu no Holocausto, foi o assassinato sistemático de seis milhões de judeus. Vimos algumas pessoas compararem o que está acontecendo em Gaza a um Holocausto, o que está errado. Não há nada como o Holocausto, então não há nada comparável ao Holocausto.
P – Mas houve genocídio em Ruanda, genocídio de yazidis no norte do Iraque.
AK – Os EUA não acreditam que esteja ocorrendo um genocídio em Gaza. Mas acredito que possamos ter uma conversa construtiva sobre o que está acontecendo e como devemos garantir a redução de vítimas civis.
Queremos garantir que, como resultado dos ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro, não haja mais vítimas. O Hamas poderia parar com isso hoje, se quisesse. Tanto em relação aos reféns que eles continuam mantendo quanto às vítimas civis que continuam sendo mortas por causa do que fizeram em 7 de outubro.
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RAIO-X | AARON KEYAK, 38
Formado em Ciência Política pela Washington University em St. Louis, é o vice-enviado especial dos EUA para o Monitoramento e Combate ao Antissemitismo. Foi assessor para assuntos do Oriente Médio e Comunicações dos deputados federais Jerry Nadler e Steve Rothman. Também foi o encarregado de relações com a comunidade judaica na campanha presidencial de Joe Biden, em 2020.
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress