SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao decidir que o mundo deve “transitar dos combustíveis fósseis”, a COP28, conferência do clima da ONU concluída na última quarta-feira (13), deu um passo histórico nas negociações e deve orientar a revisão das metas climáticas dos países nos próximos dois anos. No entanto, o texto, negociado também entre grandes produtores de petróleo, deixa brechas que beneficiam o setor de óleo e gás.
“Transitar dos combustíveis fósseis, de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica para atingir emissões líquidas zero em 2050, mantendo-se junto à ciência”, diz o principal trecho da decisão.
De acordo com negociadores da COP28, a frase pode gerar uma ilusão de que se estabeleceu um prazo –o ano de 2050– para o setor de combustíveis fósseis. No entanto, o conceito de zerar “emissões líquidas” implica em compensações das emissões realizadas através de atividades que capturam carbono. Essas remoções se dão em outros setores, como florestas, oceanos e geotecnologias.
Em outro trecho, a decisão prevê o uso de combustíveis zero carbono ou baixo carbono por volta do meio do século. No entanto, não há uma definição clara do que seja “baixo carbono”, segundo observadores das negociações. Uma indústria petroleira pode se dizer de baixo carbono em relação a uma concorrente, por exemplo, caso sua tecnologia emita qualquer quantidade de carbono menor que a outra.
Em julho, a Organização Marítima Internacional chegou a um termo mais claro do que “baixo carbono” para se referir à transição energética dos combustíveis dos navios: tecnologias de emissão zero ou próximo de zero.
Outros dois itens repetem decisões expressas na COP26, de 2021, sem acrescentar detalhes ou compromissos.
O primeiro é a decisão de reduzir o carvão de emissões não abatidas ou compensadas –“abatement”, termo em inglês para se referir ao abatimento de emissões, é outro exemplo de linguagem vaga que dá amplo espaço para o setor de combustíveis fósseis reportar redução ou compensação de emissões, sem quaisquer parâmetros ou critérios comuns.
O segundo é a previsão de eliminar gradualmente os subsídios “ineficientes” –outro adjetivo que permite interpretação livre. Embora já estivesse prevista na COP26, essa diretriz ganhou complementos que ampliam o espaço para justificar a sua falta de implementação, passando a valer apenas para subsídios que não tratem de pobreza energética ou transições justas.
A decisão também legitima a controversa geotecnologia do CCS (“carbon capture and storage”, na sigla em inglês), que tem sido forçosamente incluída em relatórios do painel do clima da ONU e nas negociações das COPs do clima, embora ainda não apresente estudos suficientes sobre sua segurança. A proposta usa a mesma expertise e tecnologia da indústria petroleira –e por isso conta com seu apoio– para absorver carbono da atmosfera e estocá-lo em solos profundos ou no fundo do mar.
“Acelerar tecnologias com zero ou baixas emissões, incluindo, entre outras, energias renováveis, nuclear, tecnologias de redução e remoção, como captura de carbono e utilização e armazenamento, especialmente em setores difíceis de abate, e hidrogênio com baixo teor de carbono”, diz o trecho da decisão, que inclui outros dois temas controversos: a energia nuclear e o hidrogênio “de baixo carbono”.
Diferente do hidrogênio verde, produzido com fontes renováveis, o “de baixo carbono” pode ser produzido com combustíveis fósseis, como o gás, com compensação de emissões, por exemplo.
O gás é considerado um combustível de transição para países dependentes de petróleo, por ter emissões cerca de 20% menores. A decisão da COP28 dedica um parágrafo ao reconhecimento de que “os combustíveis de transição podem desempenhar um papel na facilitação da transição energética, garantindo ao mesmo tempo a segurança energética”.
O trecho é interpretado por observadores das negociações como uma licença para a abertura de novas frentes de exploração de gás –o que vai na contramão da transição energética, ameaçando o cenário de manter o aquecimento global limitado a 1,5°C.
Segundo o painel do clima da ONU, as explorações atuais de combustíveis fósseis já têm potencial de emitir mais do que o orçamento de carbono do cenário de 1,5°C permitiria.
Apesar das brechas, a avaliação sobre a decisão da COP28 é bastante positiva por se tratar de um sinal político dado ao setor e aos países, que agora são incumbidos de incorporá-lo às suas políticas domésticas.
“A decisão não é impecável e há brechas complicadas nela, mas ela é tudo que eles [das indústrias de energias fósseis] não queriam”, avalia Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa. “Eles perderam, pois a decisão não ficou circunscrita a emissões, que é a costumeira linha de defesa saudita, tampouco ficou limitada a um tipo de combustível fóssil”, conclui.
Mark Lutes, conselheiro global de política climática do WWF, vê na decisão “um sinal importante”. “Mas todo o resto precisa ser definido: ritmos, prazos e diferenciação entre os países”, afirma.
Segundo ele, os atores do setor de combustíveis fósseis ainda podem fingir que o sinal não foi dado e continuar com seus negócios convencionais, enquanto outros vão acelerar a exploração de combustíveis fósseis. “Agora, os países precisam se posicionar”, indica.
Ana Toni, secretária de clima do Ministério do Meio Ambiente, avalia que a COP28 dá uma mensagem clara aos investidores. “Não podemos perder de vista a mensagem política que foi dada nesta COP, reconhecer o ‘começo do fim’, reconhecer que não tem volta, reconhecer que vamos ter que acelerar a trajetória da descarbonização e que temos que rever a dependência das nossas economias aos combustíveis fósseis”, afirma.
Já para um negociador ouvido pela reportagem, é preciso dimensionar a decisão da COP28 como um sinal político, não como uma determinação. Segundo ele, se as decisões fossem determinísticas, o preço das petroleiras teria despencado no mercado de ações no dia seguinte à COP28, o que não aconteceu.
ANA CAROLINA AMARAL / Folhapress