SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na música, o ano que chega ao fim foi do chifre e do namoro mal acabado. Não é como se músicas sobre traições, pessoas que são trocadas num relacionamento ou sentem ódio de um ex não fizessem sucesso desde que o mundo é mundo, mas este ano elas estiveram no centro dos holofotes.
Lá fora, a cantora SZA encabeça listas de melhores do ano da crítica e mais ouvidos no streaming com o álbum “SOS”, do hit “Kill Bill”, em que ela canta a vontade de matar seu ex e a namorada dele. A americana, que foi escalada para o próximo Lollapalooza Brasil e se tornou o nome com mais indicações ao próximo Grammy, já tinha se destacado na seara com seu primeiro disco, “Ctrl”, lançado há cinco anos.
Shakira ganhou o Grammy Latino de música do ano com “Bzrp Music Sessions, Vol. 53”, sucesso cheio de indiretas a seu ex-marido, o ex-jogador de futebol Gerard Piqué, que a traiu. A faixa mais ouvida do mundo no Spotify, “Flowers”, de Miley Cyrus, traz a cantora desabafando sobre o fim de seu casamento com o ator Liam Hemsworth.
No Brasil não foi tão diferente. O arrocha teve um crescimento este ano, puxado principalmente pelo sergipano Nadson, o Ferinha, de 21 anos. Entre seus sucessos estão “Posta Aí”, em que ele pede a ex que o bloqueie nas redes sociais antes de compartilhar mentiras sobre o relacionamento, e “Cadê Seu Namorado, Moça?”, em que deseja que tudo dê errado para a ex.
Um dos acontecimentos que paralisou o Brasil tem tudo a ver com chifre e ódio ao ex. O disco “Escândalo Íntimo”, de Luísa Sonza, acabou ofuscado por seu romance com o streamer Chico Moedas, retratado no hit “Chico”, que gerou a cena da cantora lendo uma carta em que expunha como foi traída ao vivo durante o programa Mais Você, de Ana Maria Braga. Nesses dias, não se falou de outra coisa.
Curiosamente, o sertanejo, gênero repleto de músicas sobre traição e que emplacou quatro dos cinco artistas mais ouvidos do ano no Spotify, não teve tantos hits de dor de cotovelo. O sucesso “Erro Gostoso”, de Simone Mendes, narra a história de uma amante dividida entre o prazer e a culpa de viver um romance proibido, enquanto “Leão”, hit póstumo na voz de Marília Mendonça, é sobre uma paixão avassaladora.
A música mais tocada do ano no streaming, “Nosso Quadro”, da artista mais escutada, Ana Castela, não é tomada pelo rancor, mas retrata um namoro que “parou pela metade”, como ela canta. No sucesso, a boiadeira mais lamenta do que condena o ex pelo fim do romance, por cima de batidas suaves que remetem ao reggaeton.
Essa mistura de letras sobre a vida no campo com música eletrônica, aliás, deu o tom de “Ela Pirou na Dodge Ram”, hit de Luan Pereira, outro astro do agronejo, em parceria com o funkeiro Ryan SP o único nome fora do sertanejo entre os cincos mais populares do Spotify. A dupla repetiu a aposta em outro hit agro-ostentação-automotivo, “Dentro da Hilux”.
Ryan SP foi um dos funkeiros de maior destaque do ano, mas o Rio de Janeiro também deu sua contribuição. MC Kevin o Chris emplacou dois sucessos ”Faz um Vuk Vuk (Teto Espelhado)” e “Tá OK”, em que atualiza a batida clássica do tamborzão.
No funk, o ano também foi de reconhecimento internacional a DJs com músicas estouradas nos bailes. O DJ K, sucesso em São Paulo, foi elogiado pela Bíblia indie dos Estados Unidos, o Pitchfork, com sua abordagem sombria do mandelão, o funk bruxaria.
O site resenhou e deu nota alta a “Sexta dos Crias”, do carioca DJ Ramon Sucesso, com seu beat do tipo bolha e seus sets mixados cheios de improviso com uma agilidade assustadora motivo pelo qual viralizou na internet.
Este também foi o ano da abundância da música ao vivo. Só a cidade de São Paulo recebeu três megafestivais, o Lollapalooza com destaque para os shows de Rosalía e Billie Eilish, o The Town com Bruno Mars e o Primavera Sound com The Cure. O GP Week, festival de proporções menores, levou o rapper Kendrick Lamar à capital paulista, enquanto o C6 levou Kraftwerk ao parque do Ibirapuera.
O país também chacoalhou com a primeira turnê de Taylor Swift, a artista mais ouvida do ano no Spotify desbancando o porto-riquenho Bad Bunny, que estava no posto há dois anos consecutivos e lançou um álbum de pouco apelo este ano. Swift reuniu multidões por onde passou e, no Rio de Janeiro, viu a fã Ana Benevides morrer num dia em que a sensação térmica no show passou de 60ºC.
Foi um caso que chocou o país e gerou diversas críticas a Time for Fun, ou T4F, empresa que realizou a turnê de Swift e diversos outros megaeventos. A distribuição gratuita de água em shows e festivais pode ser um legado após a tragédia.
Além de Swift, passaram pelo país nome como The Weeknd, Red Hot Chili Peppers, Roger Waters e Paul McCartney, todos eles lotando estádios. Mas nenhum desses nomes causou tanto alvoroço quanto a turnê de reunião do RBD, o grupo mexicano que saiu da novela “Rebelde”, sucesso nos anos 2000.
O rebuliço com as apresentações mostram uma tendência cada vez mais presente na indústria do entretenimento os shows de reunião que mexem com a nostalgia. Outros nomes de sucesso da primeira década do século se reuniram para turnês disputadas, casos de NX Zero e Restart, enquanto Pitty levou aos palcos o show de “Admirável Chip Novo”, seu primeiro e mais conhecido álbum, de 2003.
Os Titãs surfaram nessa onda, reunindo seus integrantes clássicos, como Nando Reis e Arnaldo Antunes, e caindo na estrada novamente. Já Caetano Veloso levou de volta aos palcos “Transa”, celebrado disco de 1972 que rendeu apresentações com os músicos que tocaram no álbum, no Rio e em São Paulo. O baiano também foi tema de um elogiado álbum em que Xande de Pilares interpreta suas composições.
Entre os lançamentos nacionais, o último disco de Elza Soares, “No Tempo da Intolerância”, veio ao mundo, e João Gilberto ganhou um álbum póstumo, “Relicário”. Martinho da Vila fez uma ópera ao seu estilo em “Negra Ópera”, Chico Buarque lançou um registro da turnê “Que Tal um Samba?”, Jards Macalé fez uma incursão pelo amor em “Coração Bifurcado” e Ed Motta voltou a lançar um disco após cinco anos.
No pop, Pabllo Vittar deu um rolê hedonista em “Noitada” e “After”, Iza reencontrou o prazer em “Afrodhit”, Ludmilla não ficou muito satisfeita com seu “Vilã” e Anitta soltou alguns funks para gringos com o auxílio de Gabriel do Borel.
Jão se distanciou da sofrência e ressurgiu mais sexy em “Super”, enquanto Marina Sena cantou seus flertes urbanos em “Vício Inerente” e Gloria Groove abraçou o funk em “Futuro Fluxo”. Veigh foi o maior nome do trap com “Dos Prédios”, mas Orochi também fez números com “Vida Cara”.
Entre outros discos que marcaram o ano estão o samba rebobinado em rap de Marcelo D2, com “Iboru”, o piseiro pop de João Gomes em “De Norte a Sul”, o rock com pé no hip-hop de Mateus Fazeno Rock em “Jesus Ñ Voltará”.
Houve ainda balada existencialista de FBC em “O Amor, o Perdão e a Tecnologia Irão nos Levar para Outro Planeta”, a nostalgia atemporal de Ana Frango Elétrico em “Me Chama de Gato que Eu Sou Sua”, as crônicas surrealistas de Rodrigo Ogi em “Aleatoriamente” e o pop onírico de Luiza Lian em “7 Estrelas”.
Lá fora, os Rolling Stones lançaram “Hackney Diamonds”, primeiro álbum de inéditas em quase 20 anos. O Metallica quebrou um hiato de quase dez anos, com “72 Seasons”, e o Paramore voltou após dem seis anos com o single “This Is Why”, sem discos, enquanto o Foo Fighters fez seu primeiro álbum após a morte do baterista Taylor Hawkins, “But Here We Are”.
No rap, Drake, que cancelou seu show no Lollapalooza Brasil, lançou o arrastado e reflexivo “For All the Dogs”, Travis Scott fez um blockbuster trap viajado em “Utopia” e André 3000, ex-Outkast, surpreendeu todo mundo com “New Blue Sun”, em que basicamente toca flauta.
Os ritmos latinos também se mantiveram em alta, com Peso Pluma, rapper do México, que lançou “Génesis”, e Karol G, reggaetonera da Colômbia, com “Manana Será Bonito”.
O supergrupo indie Boygenius, de Julien Baker, Phoebe Bridgers e Lucy Dacus, conquistou o público com o álbum “The Record”, Lana del Rey seguiu prestigiada com “Did You Know ”, Janelle Monáe flertou com a música jamaicana em “The Age Of Pleasure” e Olivia Rodrigo deu sequência a seu pop rock para geração Z com “Guts”.
O ano também foi de perdas na música. Rita Lee, um dos grandes nomes da música brasileira, morreu em maio e foi alvo de homenagens de artistas e fãs Brasil afora. Nos deixaram ainda João Donato, craque do piano, Luiz Schiavon, tecladista do RPM, Canisso, baixista dos Raimundos, Astrud Gilberto, a voz da bossa nova no mundo, e Lanny Gordin, o guitarrista da tropicália.
No mundo, a música perdeu o renomado cantor americano Tony Bennett, a roqueira pop Tina Turner, o mago japonês da composição Ryuichi Sakamoto, o cantor americano de folk David Crosby, o ex-baixista dos Smiths, Andy Rourke, e a cantora irlandesa Sinéad O’Connor.
LUCAS BRÊDA / Folhapress