Megadecreto de Milei gera avalanche de dúvidas e racha argentinos

BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Da noite para o dia, os argentinos viram as bases de seu sistema econômico passarem por um giro de 180°. O megadecreto anunciado na quarta (20) pelo presidente ultraliberal Javier Milei para acabar com regulações do Estado acirrou a polarização, abriu um extenso debate e gerou uma avalanche de dúvidas sobre o que de fato pode mudar.

O país se dividiu basicamente em dois nesta quinta (21), o que se materializou em alguns dos assuntos mais comentados no X. De um lado, quem publicava “56%”, se referindo aos votos que Milei recebeu no segundo turno das eleições e portanto ao respaldo que ele tem para fazer as profundas mudanças que prometeu na campanha.

Do outro, quem dizia “panelaço”, convocando para uma nova manifestação às 21h desta quinta, que aconteceu em algumas cidades, mas de forma mais reduzida. Eles exaltavam o protesto espontâneo que tomou a frente do Congresso Nacional em Buenos Aires e outras cidades durante a madrugada anterior e argumentavam que Milei não vai aguentar a pressão das ruas.

As principais críticas, de diversos lados, se referem a como as mudanças foram feitas. Em seu décimo dia de governo, o presidente foi à TV, declarou situação de emergência econômica por dois anos e determinou a revogação ou alteração de mais de 300 leis e normas através de um chamado Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) —vários presidentes já o usaram, mas não de maneira tão radical.

As medidas reduzem ou eliminam totalmente regulações de áreas como trabalho, indústria nacional, comércio, planos de saúde, aluguéis e internet. Também abrem caminho para a privatização de estatais como a Aerolíneas Argentinas e a petroleira YPF, e favorecem empresas como a Starlink, os satélites de Elon Musk.

Foram tantas medidas de uma vez só que o país passou o dia tentando entender o que elas significam, com debates nas ruas, na mídia e nas redes sociais entre analistas, jornalistas e políticos. Também houve muitas discussões sobre quando as alterações passarão a valer e se seriam constitucionais.

Como não tem data, o decreto deve entrar em vigor oito dias após sua publicação. A legislação prevê que ele seja encaminhado em até dez dias a uma comissão do Congresso (ainda não formada), que tem mais dez dias para enviá-lo aos plenários da Câmara e do Senado. O texto só deixa de valer se ambas as Casas o rejeitarem por completo, ou seja, não se pode fazer emendas.

Até aqui, as reações indicam que Milei enfrentará resistência. Sua coalizão A Liberdade Avança só tem 37 dos 257 deputados e 7 dos 72 senadores. A maior força, que continua sendo o peronismo e o kirchnerismo através da aliança Frente de Todos, já demonstrou clara oposição de suas bancadas.

Apesar de o ex-presidente Mauricio Macri ter dito que as medidas “requerem apoio total”, seu próprio partido PRO e sua aliança Juntos pela Mudança racharam, com parte de seus líderes criticando o megadecreto nesta quinta. Ao longo das horas, outras forças também foram se somando ao coro.

“Nenhuma crise se resolve atropelando a institucionalidade democrática […] Não há nenhuma dúvida de que nosso país precisa de uma mudança, mas para que ela seja legítima e duradoura, isso deve ser feito respeitando a ordem jurídica”, declarou em nota o centenário partido UCR (União Cívica Radical).

“A Argentina precisa de reformas, mas não por decreto. O instrumento para que isso ocorra é uma lei do Congresso. Devemos evitar que, em quatro anos, outro presidente, com um decreto semelhante, possa reverter tudo. A divisão de poderes é peça central de nossa República”, escreveu Horacio Rodrigues Larreta, um dos fundadores do PRO ao lado de Macri.

Pelo menos uma ação judicial já foi protocolada pedindo a anulação total do megadecreto, pela associação civil Observatório do Direito à Cidade, que costuma questionar políticas na capital. Centrais sindicais também começam a falar em grandes paralisações.

Horas depois de anunciar a forte desregulação em rede nacional ao lado de 12 ministros e membros de seu governo, Milei voltou a defender suas reformas em entrevista na manhã desta quinta: “Aviso que vêm mais”, disse. Ele pretende enviar um grande pacote de leis ao Congresso nos próximos dias, que deve incluir uma mudança no cálculo da aposentadoria e a expansão do imposto de renda.

Ele justificou as mudanças dizendo que o Estado e os políticos são as causas dos problemas do país. Também minimizou os panelaços e protestos contrários, afirmando que os manifestantes podem estar sofrendo de síndrome de Estocolmo, “apaixonados pelo modelo que os empobrece”, ou que sentem nostalgia pelo comunismo.

Milei foi eleito prometendo mudanças radicais para resolver a crise econômica e a inflação que ultrapassa os 160% anuais na Argentina. Desde que assumiu, em 10 de dezembro, iniciou um acelerado plano com quatro principais frentes.

As primeiras foram uma forte desvalorização do peso oficial, que tinha o valor controlado pelos governos anteriores, e um duro corte nos gastos públicos. Esses cortes incluem a suspensão de obras públicas, a redução de subsídios a energia e transporte e o enxugamento de repasses às províncias.

As outras duas frentes são o mais novo decreto e o pacote de leis ao Congresso. Ele também promoveu algumas mudanças na política cambial e monetária, fixando um encarecimento mensal de 2% no dólar oficial e reduzindo a taxa de juros de 133% para 100%, na intenção de que a inflação vá diluindo as dívidas do governo.

Até agora, porém, as medidas têm tido um impacto severo na vida dos argentinos. Com o fim nos controles de preços, a desvalorização da moeda e o aumento de impostos a importações e exportações, uma onda de remarcações de preços em comércios e serviços fez o poder de compra da população derreter ainda mais, dessa vez de forma repentina.

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VEJA A LISTA DE 30 PONTOS LIDA POR MILEI

1 – Revogação da Lei de Aluguel “para que o mercado imobiliário volte a funcionar sem problemas e alugar não seja uma odisseia”

2 – Revogação da Lei de Abastecimento “para que o Estado nunca mais atente contra o direito de propriedade dos indivíduos”

3 – Revogação da Lei das Gôndolas “para que o Estado pare de se intrometer nas decisões dos comerciantes argentinos”

4 – Revogação da Lei do Compre Nacional “que beneficia apenas determinados atores do poder” (concede prioridade aos fornecedores nacionais em compras públicas)

5 – Revogação do Observatório de Preços do Ministério da Economia “para evitar a perseguição às empresas”

6 – Revogação da Lei de Promoção Industrial

7 – Revogação da Lei de Promoção Comercial

8 – Revogação da regulamentação que impede a privatização das empresas públicas

9 – Revogação do regime de sociedades do Estado

10 – Transformação de todas as empresas estatais em sociedades anônimas para posterior privatização

11 – Modernização do regime trabalhista “para facilitar o processo de geração de emprego genuíno”

12 – Reforma do Código Aduaneiro “para facilitar o comércio internacional”

13 – Revogação da Lei de Terras “para promover investimentos”

14 – Modificação da Lei de Controle de Incêndios

15 – Revogação das obrigações que os engenhos açucareiros têm em relação à produção de açúcar

16 – Liberação do regime jurídico aplicável ao setor vitivinícola

17 – Revogação do sistema nacional de comércio mineiro e do Banco de Informação Mineira

18 – Autorização para a cessão total ou parcial das ações da Aerolíneas Argentinas

19 – Implementação da política de céus abertos (sobre o trânsito aéreo internacional)

20 – Modificação do Código Civil e Comercial “para reforçar o princípio da liberdade contratual entre as partes”

21 – Modificação do Código Civil e Comercial para garantir que as obrigações contraídas em moeda estrangeira devam ser pagas na moeda acordada

22 – Modificação do quadro regulatório de medicina pré-paga e planos de saúde

23 – Eliminação das restrições de preços para a indústria pré-paga

24 – Inclusão das empresas de medicina pré-paga no regime de planos de saúde

25 – Estabelecimento da prescrição eletrônica “para agilizar o serviço e minimizar custos”

26 – Modificações no regime de empresas farmacêuticas “para promover a competição e reduzir custos”

27 – Modificação da Lei de Sociedades para permitir que os clubes de futebol se tornem sociedades anônimas, se assim o desejarem

28 – Desregulação dos serviços de internet via satélite

29 – Desregulação do setor de turismo, eliminando o monopólio das agências de viagens

30 – Incorporação de ferramentas digitais para procedimentos nos registros automotores

JÚLIA BARBON / Folhapress

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