Filme ‘Propriedade’ brilha ao dar vida aos fantasmas da escravatura

FOLHAPRESS – Roberto, papel de Tavinho Teixeira, chega em casa assobiando e feliz: traz a chave de seu novo carro. Blindado, explica à mulher, a estilista Tereza, vivida por Malu Galli, que não demonstra o menor entusiasmo pelo fato.

Juntos, saem com o carro para uma visita à fazenda da família. Talvez Roberto quisesse ajudar Tereza a espairecer —ela continua traumatizada pela história de violência de que foi vítima.

Pensando bem, talvez Roberto nem esteja tão preocupado com o que se passa na cabeça da mulher. Tem negócios a tratar. Chegando à fazenda, alguns sinais de desarranjo surgem. Roberto pega uma espingarda (ou fuzil, algo assim). Teresa sofre um enorme susto ao detectar a presença de estranhos na casa.

Corte seco e um flashback no qual ficamos sabendo o que realmente se passa no lugar: estamos numa reunião em que os meeiros (ou colonos, ou trabalhadores rurais) ficam sabendo que a fazenda será transformada em um hotel e eles serão desalojados da terra.

Esse é o momento em que “Propriedade” nos remete aos anos do cinema novo, que tanto representou a luta dos camponeses contra os senhores de engenho.

A decisão da gente pobre desencadeia não propriamente um episódio de luta de classes no sentido clássico, mas todo o ressentimento que aquelas pessoas sentiam contra os senhores da terra sem saber claramente que sentiam.

Daí por diante estamos no universo do terror. Roberto não chega a experimentá-lo, pois logo é morto. Mas Tereza está dentro do carro blindado, blindadíssimo, agora atacado pelos ocupantes da terra. Então notamos que o drama rural se converte, de repente, em filme de terror. Aos gritos e socos, homens e mulheres tentam invadir o automóvel. Tereza tenta dar partida no veículo; não consegue.

O assalto ao blindado lembra, em tudo e por tudo, “A Noite dos Mortos-Vivos”, de George Romero, de 1968. Há uma explosão de ódio que já nada tem de racional. E nem é luta de classes.

De certo modo é mais grave: trata-se da rebelião de uma população impotente diante de um poder infinitamente maior, em todos os sentidos. Estando despossuídos teoricamente —a velha pregação marxista já não existe ou faz efeito—, resta-lhes retaliar com o ódio que anos e anos de submissão alimentaram.

Estamos, em parte, no tema que Kleber Mendonça Filho desenvolveu em “O Som ao Redor”: os fantasmas da escravatura retornam, por mais que o poder os sublime. O andamento, no entanto, é bem outro. Em “O Som ao Redor” uma vingança acontece, fria, longamente preparada e refletida.

Em “Propriedade”, isso já não faz sentido. O furor é destrutivo, e o espectador não é mais convocado a se perguntar sobre a ação: ela acontece. A Tereza resta a possibilidade de, finalmente, tirar o carro dali.

A exemplo dos zumbis de Romero, os camponeses de Daniel Bandeira, autor deste filme, não pensam no que acontecerá amanhã. Ao contrário dos velhos combatentes das, digamos, Ligas Camponesas, não precisam pensar nas consequências dos seus atos.

Eles não são uma luta. São, antes, um desabafo. Importa a catarse. Com vingança ou sem, com catarse ou sem, todos eles sabem que as leis, as polícias, os políticos, em suma, o poder vai se desencadear sobre eles.

A diferença em relação aos tempos do marxismo, é que na era das lutas de classes podia-se acreditar que quem nada tem só tem a ganhar ao se insurgir contra o poder instituído.

No caso brasileiro atual é um pouco diferente: quem se insurgir contra o poder não terá nada a ganhar, exceto desfrutar do prazer imediato da vingança (sem contar que as leis e seus prepostos podem chegar antes de a vingança se completar).

Como se vê, o Nordeste continua a ser um lugar vital para se pensar nas pendências brasileiras, no fosso econômico brutal, por exemplo, pois o trabalhador rural de ontem é o mesmo que ressurge, fantasma urbano, na pele do assaltante ou do sequestrador.

Para resumir, “Propriedade” nos lembra, com a estranha sutileza própria aos filmes de terror, que o horror não está no horror (como insistia Julio Bressane nos tempos de ditadura) e que a conjunção da repressão contínua e fortíssima contra os mais pobres tende a desembocar no banditismo desenfreado com que no Brasil convive-se no dia a dia.

Os fantasmas da escravatura continuam, afinal, bem vivos —este é o ponto que “Propriedade” toca com propriedade.

PROPRIEDADE

– Avaliação Ótimo

– Quando Em cartaz nos cinemas

– Classificação 16 anos

– Elenco Malu Galli, Tavinho Teixeira, Ane Oliva

– Produção Brasil, 2022

– Direção Daniel Bandeira

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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