Polícia Civil deixa de investigar 9 entre 10 roubos de carga em SP

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O motorista dos Correios Marcos da Silva, 50, já foi vítima de roubo de carga 25 vezes. Em julho de 2019, no mais grave caso, foi atacado por cinco criminosos quando entregava encomendas na zona sul da capital. Levou tantos socos e chutes pelo corpo que, traumatizado, até hoje depende de remédios para dormir e trabalhar.

Mesmo com uma coleção de boletins de ocorrência registrados pela Polícia Civil de São Paulo, Silva, conforme diz, jamais teve notícias sobre abertura de inquéritos. Só soube da solução de um caso, de 2017, em que policiais militares prenderam os suspeitos em flagrante.

“Quando era na Polícia Federal, funcionava. Agora, a gente vai na Polícia Civil e eles não estão nem aí. A gente vai na Polícia Civil, e eles falam: ‘Ah, é crime federal. O nosso salário aqui é R$ 4.000. Os caras da PF ganham R$ 11 mil para ficar lá sentados’. Então, é o seguinte: não há investigação. Eles não investigam.”

A situação vivida pelo motorista não é rara em SP. A maioria dos roubos de carga ocorridos no estado não é investigada formalmente. Segundo dados fornecidos da Secretaria da Segurança, de janeiro a setembro deste ano, foram registrados 4.424 crimes deste tipo, mas apenas 494 inquéritos foram instaurados. Isso indica que 11,2% dos casos são apurados formalmente.

O inquérito policial, geralmente iniciado após o registro de um boletim de ocorrência, desempenha um papel fundamental na obtenção de provas para subsidiar o Ministério Público no oferecimento de denúncia. Uma investigação qualificada e bem conduzida auxilia a Promotoria na decisão sobre a formulação de denúncia e no início do processo penal. Também confere segurança ao magistrado para proferir uma sentença de condenação ou absolvição.

Há uma dúvida, contudo, se esse percentual de crimes investigados pela polícia não é ainda menor. A questão existe por que a quantidade de roubos de cargas informada à Folha de S.Paulo pela polícia, via LAI (Lei de Acesso à Informação Pública), é maior do que a divulgada oficialmente pelo governo.

A reportagem solicitou dados de janeiro a setembro de 2023. A tabela enviada informa um total de 7.370 crimes de roubo de carga –2.946 a mais do que os 4.424 divulgados (diferença de 66,6%). E, ainda, um total de 592 inquéritos instaurados, o que baixaria o índice de abertura de inquéritos para 8%.

A assessoria do secretário Guilherme Derrite (Segurança) informou que o número correto é o do site e que vai investigar porque a Polícia Civil informou dados errados por meio da Lei de Acesso. O número de inquéritos estaria, porém, certo, mas até novembro (veja mais explicações abaixo).

O delegado Bruno Guilherme de Jesus, do Procarga (Programa de Prevenção, Fiscalização e Repressão ao Furto, Roubo, Apropriação Indébita e Receptação de Cargas no Estado de SP), disse, em palestra, que mais de 70% dos roubos de carga são falsos registros.

De acordo com ele, a maioria desses casos envolveria uma fraude conhecida no meio como “chave na mão”. O motorista se alia a criminosos para o desvio da carga, entrega a chave do caminhão nas mãos dos bandidos e, depois, registra uma ocorrência dizendo-se vítima de roubo.

“Isso impacta nas estatísticas, no planejamento do patrulhamento, de ações de polícia preventiva, ostensiva e investigativa, além do mercado de segurança privada”, disse, conforme material distribuído por ele ao final da apresentação ao Fórum Nacional de Prevenção de Roubos de Carga, em SP.

Especialista do setor indicam, porém, que o índice dos casos de “chave na mão” gira em torno de 25%.

A declaração do delegado irritou parte dos integrantes do evento e, também, repercutiu negativamente para além da plateia. Para o vice-presidente de segurança da Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística, Roberto Mira, essas palavras só demonstram a falta de conhecimento do policial na área.

“Então, esse rapaz [delegado] é tão despreparado. O cara [ladrão] mete o revólver na cara do motorista, ele entrega a chave. Simples assim. O que você quer que o motorista faça? O revólver na cara, não vai entregar a chave? Vai entregar a chave. Será que esse cara não tem noção das coisas? Ele não sabe absolutamente nada! Ele não sabe. Acho que esse rapaz não sabe nem o que é roubo de carga”, disse.

Ainda segundo Mira, após o evento, o delegado tentou contatá-lo por telefone para dar explicações, mas preferiu não atendê-lo. Mira disse que pedirá uma reunião com o secretário da Segurança, Guilherme Derrite, e com o governador, Tarcísio de Freitas, para reclamar do baixo número de inquéritos.

Outro setor que demonstrou insatisfação com as declarações do delegado foi o dos motoristas. Wallace Costa Landim, o Chorão, presidente da Brava (Associação Brasileira dos Condutores de Veículos Automotores), disse que as afirmações revoltaram a categoria por colocá-los todos como suspeitos.

“Ele faz umas afirmações dessas sem estudo. Ele tem que provar o estudo, de onde que ele tirou isso. Que faça, então, a investigação, e se, de fato, comprovar que o motorista tem envolvimento, ele tem que ser preso. Porque isso onera no transporte rodoviário, onera no seguro, onera na ponta, que é [o produto] na gôndola do mercado”, disse Landim.

Tanto Landim quanto Mira afirmaram que há um controle muito rígido para contratação de motoristas, até para aprovação do seguro da carga. Há, por exemplo, um cadastro negativo com nomes de profissionais envolvidos em casos suspeitos. Quem está na lista não é mais contratado pelas empresas.

Para Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é um fato grave a polícia ter fornecido, via Lei de Acesso à Informação, uma quantidade de roubos de carga acima daquela divulgada oficialmente.

Para ele, tão grave quanto os números supostamente errados são as declarações do delegado. “Então, se a autoridade policial tem conhecimento de que 70% é fraude e não diz o que está acontecendo com os motoristas, ou ele está prevaricando, ou ele fez a afirmação sem base de evidências”, afirmou ele.

OUTRO LADO

Procurada, a Polícia Civil dizer ter identificado divergência na reposta enviada pelo SIC (Sistema de Informações ao Cidadão), que apresentou dados discrepantes em relação às estatísticas oficiais sobre crimes de roubo de carga.

“Além de determinar a correção do dado, a área vai apurar as circunstâncias relativas ao fato. Desde o início da atual gestão, a SSP tem trabalhado para ampliar os mecanismos de transparência e auditoria das estatísticas criminais do estado”, diz trecho de nota.

A reportagem não recebeu desde 28 de novembro, quando o governo disse que corrigia os dados, nenhuma mensagem dizendo que os números fornecidos, por força de lei, estão, realmente, errados.

Ainda segundo o governo, até outubro, foram presos 408 suspeitos. “Esse resultado é fruto do trabalho de investigações de todos os departamentos de polícia do Estado e das atividades do programa Procarga, que integra ações das forças de segurança de São Paulo e de outras agências estaduais e federais.”

Sobre as declarações do delegado durante o fórum, em relação aos mais de 70% de falsos registros, a gestão Derrite disse que o delegado se referia a um recorte feito pelo setor de inteligência de um batalhão da Polícia Rodoviária no interior no estado, que teria analisado 168 casos em 2023 e encontrou indícios de problemas em 119 deles, que daria os “70,83% dos casos”.

A pasta diz ainda que uma delegacia da Polícia Civil de Barretos, entre abril de 2019 e dezembro de 2020, encontrou indícios de fraude “chave na mão” em 74 casos, inicialmente registrados como roubos. A gestão Guilherme Derrite não informou, porém, o total de casos analisados.

“Em nenhum momento o delegado generaliza a porcentagem deste recorte para o estado inteiro, como o jornalista erroneamente tenta concluir”, diz o governo, em nota.

O governo de São Paulo não soube informar, neste contexto, quantos motoristas foram indiciados ou presos sobre suspeita de fraudar o registro de roubo nos últimos anos.

A reportagem enviou à pasta cópia integral da apresentação compartilhada pelo delegado Jesus ao final da palestra dele, em setembro. No material, não há nenhuma referência sobre os dados citados na nota enviada à reportagem. A reportagem sugeriu que o delegado Jesus liberasse acesso ao vídeo da íntegra de sua palestra. A organização do evento, porém, informou que o policial não autorizou a liberação do vídeo.

Sobre o caso do motorista dos Correios, a reportagem enviou o número de dois boletins de ocorrência, incluindo o caso mais grave, para saber o destino deles. A polícia informou que não instaurou inquéritos porque não havia mínimos elementos para iniciar uma investigação formal.

ROGÉRIO PAGNAN / Folhapress

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