SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Networking”, “autorrealização” e outros termos infalíveis no léxico dos coaches se espraiam em capítulos como “Seja o Davi da sua história!” e “Deus e o Mindset da Inovação Constante”. Há uma nova teologia na praça evangélica, como tão bem ilustra “Empreenda Pelos Princípios Bíblicos”.
A obra de Oséias Gomes, CEO de uma franquia de clínicas odontológicas e autor de best-sellers de autoajuda focada no mundo dos negócios, é uma entre tantas inscritas no que alguns pastores vêm chamando de teologia do coaching.
Desdobramento da evangélica teologia da prosperidade, que prega conquistar já na vida terrena bonanças prometidas para o reino dos céus, ela polvilha com elementos cristãos os cacoetes inspiracionais que arrebatam uma multidão de seguidores no meio empresarial.
Não que haja fundamentação bíblica propriamente dita aqui. Trata-se de “uma deturpação da mensagem evangélica, que é sobre um Cristo que vem para nos salvar dos nossos pecados”, diz o pastor batista Yago Martins, do canal Dois Dedos de Teologia. “Já a teologia do coaching é sobre um processo de autoaperfeiçoamento a fim de encontrar sucessos econômicos, emocionais ou psicológicos.”
Enquanto o Evangelho “fornece paz mesmo nas dores e dificuldades”, diz, a proposta aqui é eliminar esses sofrimentos, ou ao menos acreditar que isso seja possível.
“O que faz ela se popularizar tanto é justamente seu apelo a uma sociedade adoecida emocional e psicologicamente, que procura na religião não um relacionamento transformador com Cristo, mas um uso instrumental da fé como um meio de levar uma vida mais agradável.”
Martins escreveu, junto com os também pastores Pedro Pamplona e Guilherme Nunes, um livro que emula no título, com alguma ironia, obras do gênero: “Você É o Ponto Fraco de Deus”. O subtítulo diz a que veio: “E Outras Mentiras da Teologia do Coaching”.
O trio inclui nesse pacote influenciadores como Deive Leonardo e Tiago Brunet, que só no Instagram batem com folga o número de seguidores de Edir Macedo e Silas Malafaia, para ficar em dois gigantes da liderança evangélica nacional. A certa altura o livro questiona: seria exagero comparar esses dois tipos de pregadores do cristianismo brasileiro?
“Respondo com uma citação de Brunet numa pregação chamada ‘Descubra o seu destino'”, afirma Pamplona. É esta: “Deus tem um lápis, mas você tem a borracha das decisões. […] A conspiração divina está no céu conspirando a seu favor, sempre para você ganhar, sempre para você sair do buraco, sempre para o casamento melhorar, sempre para a solidão ir embora, sempre para a prosperidade chegar, sempre para o bem. Mas por que as coisas dão errado? Porque, de vez em quando, a gente apaga parte do plano”.
A ideia de que você precisa destravar a fortuna que Deus reserva a todos nós é herdeira direta da teologia que assoalhou o neopentecostalismo de igrejas como Universal e Renascer.
A interseção entre os dois campos ficou clara a Pamplona após ler um artigo do estrategista digital Ícaro de Carvalho que trata o empreendedorismo como “a nova religião do homem moderno”.
Essa novidade na cena do coaching soa “bastante interessante” a Oséias Gomes, desde que os adeptos estejam “atentos aos que se apresentam com essa teoria, pois é preciso realmente conhecer a teologia para que não sejam rasos quanto ao conhecimento bíblico”, ressalva.
Ele mesmo cita Deuteronômio 8:18, que fala sobre Deus capacitando os homens para produzir riqueza, para legitimar o uso da Bíblia como “um grande manual da vida”. Inclusive na seara financeira, sobre a qual palestrou em junho no Christ Summit, evento para empreendedores cristãos que cobrava até R$ 9.467 dos participantes.
A rejeição que esse tipo de abordagem sofre dentro das igrejas, reconhece Gomes, “ainda é muito comum, infelizmente”. Bobeira. “Todo cristão precisa entender que Deus nunca foi contra a empreender, nem contra a liberdade financeira. O problema não está nas riquezas em si, mas no apego indevido a elas. Quando passo a servir ao dinheiro, deixo de servir ao Senhor. E o dinheiro é quem tem que me servir.”
Para Ricardo Hida, professor de marketing religioso da ESPM, o fenômeno se encaixa no que ele rotula como “novaerização das religiões”. De Nova Era mesmo, aquele movimento mais associado ao misticismo. “Pensa na [cantora] Enya, na astrologia.”
Não que os evangélicos queiram papo com temas assim, mas o que importa, segundo Hida, é pensar na hiperindividualização que essa vertente trouxe. “Se falar que eles estão se ‘novaerizando’, vão ter um chilique. Mas não é [crer em] duende, é ter o foco muito mais no indivíduo do que na instituição.”
É também a sacralização da psicologia, “como se fosse uma validação da fé individual”, diz. “E como não podem usar título de psicólogo, usam o de coach.”
Uma corrente que ele vê transbordar para várias crenças. Basta lembrar da Monja Coen oferecendo seminários de autoajuda, ou nos escritos do padre Fábio de Melo, exemplifica.
Esse deslocamento do poder da igreja para a pessoa vira uma ferramenta da teologia da prosperidade ao evocar glórias que vão da vida sentimental bacana à conta corrente abastecida, afirma. Se antes o enfoque era no transcendente, agora a religião se presta a resolver questões cotidianas. Quem não quer casar bem ou ficar rico que nem Abraão, dono de generosos dotes de ouro, gado e terra?
É como diz Tiago Brunet em um de seus vídeos: “Eu não sei se dinheiro traz felicidade, mas que pobreza traz uma tristeza danada, eu tenho certeza. […] Não sei se Deus me chamou para ser rico, mas para ser pobre eu tenho certeza que ele não me chamou”.
Para o pastor Yago Martins, essa não é a essência da verdadeira fé que Cristo nos legou. Ele prefere uma reflexão do escritor C. S. Lewis: “Nem sempre fui cristão. E não procurei a religião para ser feliz. Sempre soube que uma garrafa de vinho do Porto bastaria para isso. Caso você queira uma religião para se sentir confortável, eu certamente não recomendo o cristianismo. Tenho certeza de que deve haver um artigo americano no mercado por aí capaz de atendê-lo muito melhor”.
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress