SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Análises químicas revelaram o ingrediente secreto por trás da criação das primeiras cidades de todos os tempos: o esterco. Ao que tudo indica, foi graças ao uso de fertilizantes de origem animal que aglomerados populacionais com até 15 mil pessoas surgiram e prosperaram durante alguns séculos na Europa Oriental, há cerca de 6.000 anos.
Essas estruturas, classificadas como “proto-urbanas” ou “megassítios” pelos arqueólogos, foram criadas pela chamada cultura de Trypillia, cujos assentamentos ficavam a noroeste do mar Negro, nos atuais territórios da Ucrânia e da Moldova. Tudo indica que eles atingiram seu apogeu antes das primeiras cidades da Mesopotâmia (atual Iraque), tradicionalmente vistas como “berço da civilização”.
O povo da cultura de Trypillia, em sítios arqueológicos como o de Maidanetske, distribuía suas moradias e áreas de plantio e criação de animais seguindo um padrão concêntrico, com fileiras de casas formando um corredor em anel em torno de uma área mais aberta, semelhante a uma praça ou terreiro.
Também havia casas de maior porte, em cada um dos “bairros” e também para a cidade como um todo, que parecem ter funcionado como algo semelhante a uma sede da associação dos moradores, onde os habitantes se reuniam periodicamente. Não há indícios claros de diferenciação social parece não ter existido uma elite econômica, militar ou sacerdotal.
Já estava claro há muito tempo que a cultura de Trypillia emergiu graças às transformações do Neolítico, fase da história humana em que a criação de animais e a agricultura transformaram o modo de vida na nossa espécie. Em um novo estudo, publicado na revista especializada PNAS, pesquisadores alemães e ucranianos examinaram as características químicas dos restos dos animais domésticos e das lavouras dos “megassítios”, para entender como a população ali se sustentava.
Os aglomerados populacionais da região surgiram numa área de solo bastante fértil, na fronteira entre trechos de floresta e estepe, mas os dados indicam que a fertilidade natural da terra não explica sozinha o sucesso desses povos.
A equipe liderada por Frank Schlütz, da Universidade de Kiel (Alemanha), encontrou sinais de intensificação agropecuária ao examinar, na matéria orgânica dos sítios arqueológicos, o teor de nitrogênio-15, um isótopo (variante) do elemento químico nitrogênio, o qual é essencial para a construção das proteínas no organismo de animais e plantas.
Grosso modo, pode-se dizer que o nitrogênio-15, por ser mais pesado que o isótopo mais comum de nitrogênio, tende a se acumular no organismo conforme vamos subindo a cadeia alimentar. Portanto, plantas tendem a ter menos nitrogênio-15 do que herbívoros em suas células, herbívoros menos do que carnívoros etc.
Muitas plantas, como as leguminosas, conseguem obter o nitrogênio de que necessitam diretamente da atmosfera, por meio de bactérias que vivem em suas raízes, fazendo com que praticamente não haja nitrogênio-15 em seu organismo.
No entanto, os níveis do isótopo pesado nos restos orgânicos dos assentamentos de Trypillia são tão elevados, mesmo no caso das leguminosas, que só podem ser explicados por um uso constante de esterco nas plantações. Como o esterco é matéria orgânica que já passou pelo organismo animal, ele tende a concentrar o nitrogênio-15, que é absorvido tanto pelas plantas quanto pelos animais domésticos que se alimentam delas.
Os moradores dos “megassítios” criavam principalmente vacas, mas também cabras, ovelhas e, em escala bem menor, porcos. Já suas lavouras incluíam cereais como a cevada e leguminosas como as ervilhas.
“Concluímos que uma grande proporção das vacas e ovelhas eram criadas em pastagens cercadas. O esterco produzido dessa maneira era usado para fertilizar em especial as ervilhas”, disse Schlütz em comunicado oficial divulgado pela Universidade de Kiel.
Na verdade, tudo indica que a dieta dos habitantes da região era quase totalmente vegetariana, já que a combinação de cereais com leguminosas era capaz de proporcionar a maior parte de suas necessidades de calorias e proteínas. A carne corresponderia a apenas cerca de 10% da dieta, mas criar os animais era essencial para fertilizar os campos.
Segundo a equipe e outros arqueólogos, as cidades primitivas acabaram desaparecendo da região por volta de 5.000 anos atrás.
“Tensões sociais surgiram por causa de um aumento da desigualdade social”, explica o arqueólogo Robert Hofmann, também da Universidade de Kiel. “As pessoas abandonaram os assentamentos de grande escala e decidiram viver em comunidades menores de novo.”
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress