BRASÍLIA, DF, E SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Em um ano marcado por episódios de violência e casos de letalidade policial, a gestão do governo Lula (PT) na segurança pública teve enfrentamento a crises, ações desarticuladas e promessas não cumpridas.
A cúpula do governo exalta os investimentos em equipamentos, as apreensões de drogas e de bens de narcotraficantes e projeta uma queda de 6% nas mortes violentas intencionais em 2023. Especialistas, contudo, veem uma gestão mal resolvida e com soluções paliativas.
Na última quarta-feira (27), o Ministério da Justiça lançou os dados nacionais de segurança pública, plataforma que reúne índices de criminalidade repassados pelos estados e que a pasta promete atualizar a cada 30 dias.
O número de mortes violentas no Brasil nos dez primeiros meses de 2023 teve uma queda de 2,2%, segundo o levantamento. Entre janeiro e outubro deste ano, 71.078 pessoas morreram por causas como feminicídio, homicídio doloso, morte por intervenção policial, latrocínio, lesão corporal seguida de morte, mortes no trânsito e suicídios.
Comandada pelo ministro Flávio Dino, a pasta da Justiça e Segurança Pública é apontada como complexa e com potencial para gerar crises. A partir de janeiro, terá novo titular com a saída de Dino, que vai tomar posse como ministro do STF (Supremo Tribunal Federal).
Ao longo deste ano, o governo se equilibrou em uma corda bamba na segurança que incluiu a defesa dos direitos humanos, acenos aos policiais militares e declarações sobre o enfrentamento ao crime organizado apontadas como desastradas e de viés bolsonarista.
A atuação na área foi alvo de conservadores, que reclamaram de leniência do governo, e também de progressistas, que viram prioridade na lógica de guerra às drogas
Pesquisa Datafolha publicada em 7 de dezembro apontou a segurança como o segundo tema de maior preocupação dos brasileiros. No mesmo levantamento, 50% dos eleitores avaliaram a gestão Lula nesse campo como ruim e péssima, ante 29% de regular e 20% de ótima ou boa.
A preocupação coincidiu com crises na segurança pública na Bahia e no Rio de Janeiro, onde houve acirramento das disputas entre grupos criminosos, e com os episódios de letalidade policial em São Paulo.
No Brasil, a segurança pública é atribuição compartilhada entre os entes federados, principalmente entre a União –que tem sob o seu guarda-chuva as Forças Armadas e a Polícia Federal– e os estados e o Distrito Federal, que têm o controle sobre as respectivas Polícias Militares e Polícias Civis.
A Bahia, governada há 17 anos pelo PT, é apontada por adversários e até aliados como uma espécie de “teto de vidro” na área. Em seu primeiro ano de gestão, o governador petista Jerônimo Rodrigues teve que lidar com disputas entre facções criminosas, conflitos fundiários, chacinas e mortes em série que resultaram de ações policiais.
O cenário adverso vem de anos anteriores. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que a Bahia é, desde 2019, o estado brasileiro com maior número absoluto de mortes violentas intencionais. Também teve maior taxa de letalidade policial do país em 2022, quando era governada pelo hoje ministro da Casa Civil, Rui Costa.
Ao longo do ano, o governo federal lançou inúmeros programas de enfrentamento à violência, mas especialistas apontam para uma dispersão de ações e a falta de uma visão sistemática sobre o papel do governo federal.
O carro-chefe do governo na área é o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania), cuja retomada foi um pedido de Lula. Mas diversos outros programas foram sendo lançados ao longo do ano, sobretudo diante do aparecimento de crises.
Dentre eles estão o Pas (Plano de Ação na Segurança), que contempla o Pronasci, Amas (Programa Amazônia: Segurança e Soberania) e o Enfoc (Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas), iniciativa que tem como um dos objetivos promover integração institucional e de redes de informação.
Este último foi lançado no auge da crise na Bahia e no Rio de Janeiro, com estimativa R$ 900 milhões de investimento até 2026. O plano de ação, prometido para 60 dias após o lançamento, ainda não foi apresentado.
“Alguns diziam que era folha de papel, sopa de letrinhas, que era um improviso. Os dados mostram que tudo isso era falso, o programa existe e está em plena implementação. É o programa que determina a prioridade em portos, aeroportos, fronteiras, logísticas e lavagem de dinheiro”, disse Dino, em entrevista à imprensa em 21 de dezembro.
Em setembro, especialistas já avaliavam que as medidas adotadas pela pasta tendem a ser mais paliativas do que estratégias efetivas para diminuir os índices de criminalidade. Tais iniciativas abrangem ações emergenciais para situações críticas, como os eventos do 8 de janeiro, ataques a instituições de ensino e atividades de garimpo ilegal na Amazônia, além de operações colaborativas com estados e municípios.
Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que o governo Lula continua sem conseguir dar uma resposta e tem apresentado soluções pontuais para amortecer os problemas. Na sua visão, resolver de forma definitiva exige uma agenda complexa em termos políticos.
“Quando se tem muitas ações, na prática, por melhores que sejam as intenções, não tem nenhuma. A política de segurança do governo Lula se confunde com Flávio Dino, era uma ação focada na pessoa do ministro, na sua capacidade de articulação e indução. O ministro Flávio Dino é a política de segurança e por isso vai ser difícil substituí-lo”, diz.
Ele ainda questiona a eficácia e legado de ações como o decreto de GLO (Garantia da Lei e da Ordem) em portos e aeroportos, lançado como resposta à crise de segurança no Rio: “Uma coisa é fazer operação, a outra é como se estrutura uma política de segurança pública”.
Membros do Ministério da Justiça destacam a implantação da Susp (Sistema Único de Segurança Pública), cuja legislação foi aprovada em 2018. O governo se empenha em evidenciar que o programa está em pleno funcionamento, destacando os esforços contínuos de colaboração com estados e municípios.
Especialista em segurança pública, Luís Flávio Sapori afirma que o Susp ainda não foi colocado em prática da forma que a lei estabelece –uma nova estrutura de gestão, na qual o plano de ação deve ser elaborado em colaboração com os estados e municípios.
Outro projeto do Ministério da Justiça, o Celular Seguro, aplicativo que desabilita telefones furtados, recebeu elogios inclusive da oposição.
O governo Lula também deixará pendentes algumas promessas, como o programa de Recompra, que visa incentivar a população a devolver armas em troca de compensações financeiras. Dino disse em entrevista que o governo não conseguiu reestruturar a iniciativa, mas que ela está previsto.
Como a Folha mostrou, o governo ainda adiou o lançamento do Banco Nacional de Desaparecidos, previsto na Lei da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas.
Dino também encerra sua gestão na pasta sem que o caso da vereadora Marielle Franco tenha sido resolvido. Entretanto, em suas considerações finais à frente do Ministério da Justiça, ele enfatizou que o compromisso persiste, embora não tenha estabelecido um prazo para a conclusão das investigações.
Procurado, o Ministério da Justiça disse que vem atuando “de forma consistente a médio e longo prazo, como, por exemplo, a partir da estruturação de programas para combater as grandes organizações criminosas e proteger a Amazônia”. Segundo a pasta, foram investidos em 2023 mais de R$ 18 bilhões em segurança pública.
“Cabe ressaltar que a atual gestão do MJSP [Ministério da Justiça] iniciou sua atuação após uma forte política armamentista irresponsável desenvolvida nos quatro anos anteriores. Essa realidade, que levou armas às mãos de criminosos, começou a ser modificada”, disse a pasta.
O ministério também afirmou que todas as ações lançadas foram planejadas, com medidas de curto, médio e longo prazo.
A pasta comandada por Dino também alegou que o Susp “recebeu atenção adequada somente este ano”.
RAQUEL LOPES E JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress