SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Dois dos principais projetos defendidos pelas bancadas religiosas no Congresso adotam argumentos relacionados à religião como parte de sua fundamentação –que deveria ser técnica.
Essa circunstância ocorre com o PL 434/2021, que institui o Estatuto do Nascituro, e o PL 5.167/09, que proíbe casamentos de pessoas do mesmo sexo. A interferência da religião em projetos legislativos, seja de maneira direta ou não, fere a laicidade estatal e deveria invalidá-los, afirmam especialistas.
Segundo Luis Gustavo Teixeira, doutor em ciência política e professor da Unipampa (Universidade Federal do Pampa), a laicidade do Estado consta na Constituição, “mas não há uma aplicação efetiva do princípio, sobretudo em processos de deliberação sobre assuntos de natureza pública”.
O princípio assegura a separação entre Estado e religião, além de prever a liberdade religiosa dos brasileiros. “Ela [a laicidade] tem como propósito implementar dentro da esfera pública liberdade de consciência e religiosa, a autodeterminação individual e coletiva, a tolerância e a igualdade”, afirma Teixeira.
Dentro do Congresso, há três frentes parlamentares ativas relacionadas à religião. Hoje, 210 deputados e 26 senadores fazem parte da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional.
Há também uma Frente Parlamentar Católica Apostólica Romana, com 195 deputados federais, e uma Frente Parlamentar Mista Cristã e em Defesa da Religião, com 196 deputados e 13 senadores.
Os dados fazem referência a políticos que se cadastraram como signatários das frentes, o que não significa que todos eles defendam em seus mandatos, de fato, as agendas dos segmentos.
Em 1987, 34 dos 559 parlamentares que participaram da Assembleia Constituinte eram evangélicos. Segundo Teixeira, o processo de formação da bancada no Brasil começou com a Constituição de 1988, para evitar a hegemonia de católicos sobre o texto constitucional.
Segundo dados do Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar), a bancada evangélica saltou de 18 deputados e 1 senador em 2003 para 75 deputados e 13 senadores na atual legislatura.
Para a instituição, são considerados integrantes da bancada evangélica parlamentares com cargos religiosos (como bispos e pastores), cantores gospel e aqueles que professam a religião ou se alinham ao grupo em votação de temas específicos. Não há levantamento semelhante para as duas outras bancadas.
Em artigo publicado em 2021 na Revista Brasileira de Ciências Sociais, Teixeira analisou discursos feitos na Câmara dos Deputados do Brasil e em seu equivalente no Uruguai entre os anos de 1985 e 2016 para medir o papel da argumentação religiosa no debate político sobre o aborto.
Ele avaliou 1.078 discursos e sessenta proposições de lei do Brasil, em contraposição a 337 discursos e dez projetos de lei da Câmara do Uruguai.
A análise do material apontou que uma parcela significativa dos argumentos contra o aborto no Brasil (47,4% dos 1.078 discursos analisados) tinha como base argumentos religiosos, morais ou de inviolabilidade do direito à vida. No caso do Uruguai, esse tipo de fundamentação era menos expressivo, totalizando 25,2% dos argumentos.
“A conclusão é que o princípio da laicidade, mais respeitado no Uruguai, provoca constrangimento entre os parlamentares do país na hora de tratar o assunto a partir uma perspectiva religiosa”, afirma.
Segundo Teixeira, a argumentação religiosa no plenário e a perspectiva religiosa no embasamento de projetos de lei provocam a imposição das crenças de um grupo sobre outros setores da sociedade.
Essa é também a conclusão das pesquisadoras Loiane Prado Verbicaro e Paloma Sá Souza Simões em artigo publicado em 2019 na Revista da Faculdade de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Elas investigaram se a influência religiosa percebida em projetos de lei e discursos feitos em plenário por deputados federais entre os anos 2013 e 2016 no Brasil feria a laicidade estatal.
No estudo, as pesquisadoras identificaram que os parlamentares embasavam discursos em opinião religiosa, mas usavam uma argumentação racional no momento de propor leis.
Verbicaro e Simões chegaram à conclusão de que os parlamentares respeitavam a laicidade na hora de fazer projetos, mas não quando discursavam. Para as autoras, discursos políticos ou projetos de lei pautados em argumentos religiosos ferem a “doutrina da neutralidade estatal e os direitos fundamentais dos cidadãos”, segundo trecho do artigo.
A pesquisa foi feita a partir de projetos de lei e de discursos no plenário da Câmara dos Deputados. Como critério de busca, foram utilizadas palavras-chave como religião, Deus, aborto e homoafetivos.
A Folha de S.Paulo fez uma pesquisa similar à realizada por Verbicaro e Simões e procurou no site da Câmara dos Deputados por discursos que contivessem os termos “aborto” e “Deus”. A pesquisa, em novembro, gerou 555 resultados na página de discursos e debates do site da Câmara.
Uma das parlamentares que mais aparecem nos registros é Chris Tonietto (PL-RJ), autora do PL 434/2021, que institui o Estatuto do Nascituro. O projeto cria uma restrição ainda maior ao aborto permitido por lei, o que incluiria, por exemplo, casos decorrentes do estupro.
A justificativa diz, entre outros pontos, que “o aborto constitui uma grave violação da Lei Natural”. “O trecho faz referência a uma lei natural divina, ao direito da pessoa nascer”, afirma Luis Gustavo Teixeira. “É um argumento religioso e viola a laicidade estatal.”
Nos discursos sobre o aborto que Tonietto faz no plenário, chama o ato de “intrinsecamente mau” e pede “que o imaculado coração de Maria nos livre da maldição do aborto”.
O PL 5.167/09 cita trechos da Bíblia para fundamentar a proposição que proíbe que pessoas do mesmo sexo possam se casar.
O texto diz que os autores “representam o segmento católico e evangélico” e tem argumentos como: “Deus nos criou e designou o casamento e a família como a mais fundamental das relações humanas”. A proposta, de 2009, é de autoria do então deputado pelo PSB do Espírito Santo Capitão Assumção e de Paes de Lira (à época no PTC-SP).
O projeto de lei recebeu críticas de entidades LGBTQIA+, que foram à Corte Interamericana de Direitos Humanos contra a proposta. Em documento entregue à corte, organizações como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) afirmam que o projeto viola o Estado democrático de Direito e “fazem uso de uma leitura enviesada dos textos bíblicos”.
Joana Zylbersztajn, doutora em direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo) e autora do livro “A Laicidade do Estado Brasileiro”, concorda que a fundamentação religiosa em projetos de lei viola a laicidade, mas diz não haver problemas em parlamentares se valerem do discurso no plenário.
“Faz parte do jogo o parlamentar fazer um discurso para a sua base. Mas o Congresso precisa garantir que os projetos não sejam religiosos, mesmo quando há a tradução do discurso para o universo jurídico”, afirma.
Ana Elisa Spaolonzi, doutora em educação e professora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), afirma que o discurso religioso só deveria chegar ao Congresso se fosse possível garantir a pluralidade de religiões na Casa.
“Deveria haver, na época das eleições, uma regulamentação com relação a pessoas que se candidatam no âmbito público proferindo valores privados, como o religioso.”
A reportagem tentou contato com as três frentes parlamentares citadas na reportagem. A Frente Parlamentar Mista Cristã, afirmou, por meio de nota, que o Parlamento é um espaço de livre discussão de ideias. Disse que “restringir o debate é limitar a democracia” e que as frentes religiosas existem para fortalecer o exercício da laicidade.
“O tamanho e a força dessas frentes parlamentares refletem o crescente número de cristãos em nosso país, que hoje são maioria. Todos somos brasileiros e defendemos aquilo que é bom para o Brasil, mantendo o país como um país conservador”, afirmou em nota. As demais frentes parlamentares não responderam.
A reportagem também contatou a deputada federal Chris Tonietto para comentar o assunto, mas não teve resposta.
Bancada Evangélica no Congresso
De 2003 a 2007: 19, sendo 18 deputados e 1 senador;
De 2007 a 2011: 40, sendo 36 deputados e 4 senadores;
De 2011 a 2015: 73, sendo 70 deputados e 3 senadores;
De 2015 a 2019: 60, sendo 57 deputados e 3 senadores;
De 2019 a 2023: 92, sendo 85 deputados e 7 senadores;
De 2023 a 2027: 88, sendo 75 deputados e 13 senadores.
Fonte: Diap (Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar)
ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA / Folhapress