SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O segundo domingo de 2023 amanheceu preguiçoso na capital do Brasil. Naquele dia, não se ouvia o habitual burburinho dos funcionários públicos, mas o silêncio de prédios praticamente vazios.
A partir das duas da tarde, porém, a quietude deu lugar à desordem. Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro vestidos de verde e amarelo entraram em confronto com a polícia, invadiram a Esplanada dos Ministérios e levaram vandalismo à praça dos Três Poderes.
Captadas por câmeras de segurança, essas imagens são o fio condutor do documentário “Domingo no Golpe”, dirigido pela pesquisadora Giselle Beiguelman e pelo cineasta Lucas Bambozzi.
Uma prévia de cerca de nove minutos da obra será lançada no dia 8 de janeiro no site do Museu da Democracia para marcar um ano do ataque. Em março, uma versão estendida chegará ao público no contexto dos 60 anos do golpe militar.
Beiguelman afirma que a ideia de fazer o documentário surgiu quando o GSI, o Gabinete de Segurança Institucional, disponibilizou quase 800 horas de gravação com registros da ação dos golpistas.
Como ela coordena o projeto Acervos Digitais e Pesquisa, decidiu baixar os materiais para analisar tudo. “Percebi que aquilo rendia um documentário, porque estamos discutindo no projeto onde estão a memória e os arquivos na contemporaneidade e como esse acervo é distribuído”, diz Beiguelman, que é artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
A produção usa imagens de câmeras de vigilância porque elas são o testemunho oficial do que aconteceu naquele dia. Os registros, que seriam descartados depois de algumas semanas, se tornaram documentos históricos.
A capital que se vê no documentário não é a da imponência modernista das construções de Niemeyer, mas aquela da banalidade dos subsolos e corredores de repartições públicas.
“Os registros revelam pontos de vista sobre Brasília que, para mim, eram inéditos. São imagens que fogem completamente da lógica monumental que se tem sobre essa região”, diz Beiguelman. “A multidão aparece e muda completamente a paisagem, que se torna desfigurada.”
As imagens prosaicas que antecedem essas cenas aumentam a sensação de que a normalidade foi rompida.
Lucas Bambozzi, codiretor da produção, diz que os registros dialogam com um gênero conhecido como sinfonias de metrópole, isto é, obras que exploram o cotidiano das cidades. Exemplos dessa linguagem são filmes como “Manhatta”, de Paul Strand, e “São Paulo, Sinfonia da Metrópole”, de Adalberto Kemeny e Rodolfo Lustig.
“As câmeras de vigilância capturam também a euforia da multidão. Esses atos se transformaram em uma espécie de domingo no parque para essas pessoas. As câmeras permitem ver, sobretudo, as nuances e os gestos que se deram ali.”
Um espectador mais atento notará a quase onipresença de celulares nas mãos dos golpistas. Em meio ao ataque, eles tiravam selfies e transmitiam ao vivo os atos de vandalismo, a despeito de estarem produzindo provas contra si mesmos. “É uma compulsão pela documentação. Qualquer tomada que aparecia tinha gente carregando a bateria do aparelho”, diz Beiguelman.
Chama atenção também que a sanha destrutiva dos invasores tenha sido direcionada a obras de arte. Ao todo, 78 peças foram danificadas no Congresso, sendo 14 no Senado e 64 na Câmara dos Deputados. Foram depredados trabalhos de artistas como Victor Brecheret, Athos Bulcão, Emiliano Di Cavalcanti e Frans Krajcberg. Os vândalos até urinaram sobre uma tapeçaria de Burle Marx.
Para a artista, a cultura é o território da liberdade, contradição e multiplicidade, tripé que governos autoritários tentam demolir depois que chegam ao poder. Foi isso o que fez Bolsonaro quando decidiu reduzir o Ministério da Cultura a uma secretaria especial, conduzida de forma errática ao longo do mandato.
A Lei Rouanet talvez seja o exemplo mais emblemático desse processo. A medida foi enfraquecida sob Bolsonaro, que reduziu o cachê de artistas em 93%, para R$ 3.000. “O ódio à cultura é o pressuposto do ódio à democracia”, diz Beiguelman.
Mas as câmeras registraram mais do que os golpistas. Elas flagraram a força e a fragilidade da democracia, afirma Beiguelman. Ela considera que, desde a redemocratização, a democracia era vista como um sistema inabalável, mas que foi desafiado com os ataques golpistas.
“Por outro lado, o modo como colocaram rapidamente aquilo tudo em ordem novamente é um indicador de que não é tão fácil demolir uma construção que vem se fazendo desde meados dos anos 1980”, afirma.
O documentário é entremeado por locuções da senadora Eliziane Gama (PSD) retiradas do relatório final da CPI dos atos golpistas. Num desses momentos, ela diz que o dia 8 de janeiro de 2023 ainda não terminou.
A artista acrescenta que “o 8 de janeiro começou antes do 8 de janeiro”. Para ela, a data é o efeito mais violento de um movimento de afronta às instituições que começou a ser gestado muito antes, desde a votação na Câmara do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Não à toa, essa é a cena que abre o documentário.
À época, os parlamentares foram criticados em razão de seus argumentos. Alguns disseram que estavam votando pela família, outros usavam Deus para embasar o voto. Bolsonaro, por exemplo, aproveitou o momento para exaltar a figura do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos principais símbolos da repressão durante a ditadura militar.
É como se a falta de decoro vista durante essa sessão tivesse se exacerbado no 8 de janeiro, resultando nas cenas de vandalismo. “Não é porque é público que você pode ir lá e fazer o que você quiser. É exatamente por se público que esse ambiente é negociado, princípio que é um dos pilares da compreensão sobre o que é a democracia.”
DEMOCRACIA NO GOLPE
– Quando 8 de janeiro
– Onde https://democracia.museus.gov.br/
– Produção Brasil, 2023
– Direção Giselle Beiguelman e Lucas Bambozzi.
MATHEUS ROCHA / Folhapress