Gilberto Braga, com ‘Dancin’ Days’ e ‘Vale Tudo’, deu ao Brasil sua versão de Balzac

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Balzac da Globo é como a biografia de Gilberto Braga, que chega às livrarias, define o autor de novelas já na capa. “Não extrapolamos para um Balzac brasileiro, mas é o Balzac da Globo, daquele universo”, define o jornalista Mauricio Stycer, colunista deste jornal, que assina “Gilberto Braga: O Balzac da Globo” com o também jornalista Artur Xexéo, morto em 2021.

Assim como o francês, autor que redefiniu a sociedade do século 19 em seus romances, Gilberto Braga teria reformulado a dramaturgia televisiva e dela extraído a essência de um país que começou a se ver (e a querer se ver) de maneira mais nítida e crua no horário nobre da TV.

Braga, um francófilo, também reverenciava o autor da “Comédia Humana”. “O dinheiro é a minha personagem principal desde que comecei a escrever para a televisão”, disse numa entrevista de 1983. “O dinheiro, sem querer comparar, também era a personagem principal de Balzac.”

A recorrência de Balzac foi notada por Stycer quando entrou na pesquisa da biografia, que teve uma elaboração cheia de reviravoltas dignas de novela também. O livro havia sido encomendado pelo roteirista a Xexéo, mas o jornalista morreu de câncer, aos 69, depois de iniciar o trabalho. Stycer foi, então, chamado para continuar a empreitada. Dois meses depois de Xexéo, Braga também morreu, aos 75.

“Busquei colocar a voz do Xexéo ao longo desse trabalho”, diz Stycer, que conhecia o colega desde meados dos anos 1980. “São comentários ou observações que eu me lembrava de o ter visto fazer em algum outro momento, em conversas ou textos.”

Já na construção do personagem Gilberto Braga, um cinéfilo que se tornara professor de francês e crítico de teatro e daí partiria para a teledramaturgia, o livro narra outras duas mortes de impacto importante. A primeira delas é o assassinato da avó, Rosa, pelo marido, cerca de um mês antes do nascimento do neto Gilberto, em 1945. Ele ganharia na certidão apenas o sobrenome do avô, Tumscitz.

O feminicídio é contado no livro pela primeira vez como a história da família de Braga. O crime chegou às primeiras páginas dos jornais na época, mas o autor nunca falara no assunto até decidir abordar isso nas entrevistas para a biografia.

A mãe, Yedda Braga, é uma entidade que perpassa sua obra com traços biográficos que vão ajudar a povoar a aldeia gilbertiana. É o sobrenome dela que Braga escolhe usar quando cristaliza a ideia de se tornar um autor popular. E é também sentado sob um retrato dela que ele escreve “Dancin’ Days”, de 1978, a novela que o poria em definitivo no topo do primeiro time da Globo.

Yedda virou personagem e teve seu fim representado quase de modo literal na mesma novela. Foi Janete Clair, madrinha do início da carreira do autor, quem chamou a atenção para o erro que ele estaria prestes a cometer com Áurea, vivida por Yara Amaral e inspirada em Yedda, que havia se matado em 1972 numa crise depressiva.

“Gilberto, você continua com essa ideia de a Áurea se suicidar? Não faça isso”, teria pedido Clair, segundo o livro. “A espectadora se identifica totalmente com a Áurea. Se você fizer ela se suicidar, vai ficar muito baixo-astral.” Braga aquiesceu.

“Dancin’ Days” é também a última novela que ele escreveu sozinho. Em “Água Viva”, de 1980, ele formou um time com Manoel Carlos e criou o embrião de um sistema de sala de roteiro que ainda era inédito no formato das novelas.

O time aumentava de trama e trama e também os temas então contemporâneos se adensavam. Cenas de sexo, emancipação feminina, relacionamentos homossexuais e violência chegaram a ser interceptadas por uma censura oficial ainda ativa nos anos 1980.

De “Brilhante”, de 1981, Gilberto Braga partiu numa escalada que culminaria em “Vale Tudo”, de 1988, a grande obra do roteirista, e incorporou parceiros como Leonor Bassères e Aguinaldo Silva.

Foi ali que convergiram em definitivo o estilo, as personagens femininas fortes, os vilões bem moldados e sobretudo o retrato das classes altas que evitava a armadilha maniqueísta, a partir do olhar de um autor nascido na classe média e com fascínio pelo mundo daqueles que eram chamados nas novelas de grã-finos.

A fórmula ainda viria a encontrar outros picos em “Celebridade”, de 2003, e “Paraíso Tropical”, de 2007, e acompanharia Braga até “Babilônia”, de 2015, sua última novela.

Ainda sobre “Vale Tudo”, a biografia destaca os elementos que ergueram a obra responsável por mudar a teledramaturgia brasileira. Primeiro, uma pergunta de Gilberto Braga ao irmão, Ronaldo, que teria sido o estalo para o enredo. “Você acha que alguém não pode ser honesto e ganhar dinheiro? Não vale a pena ser honesto no Brasil?”

A questão vai parar no primeiro capítulo do folhetim, numa conversa entre a Maria de Fátima, papel de Glória Pires, e o avô, cuja casa ela vende para iniciar suas peripécias rumo à alta sociedade carioca.

Depois, a música de abertura. É num show em que Gal Costa entoa “Brasil”, de Cazuza, que Braga mesmo a escolhe para embrulhar a história.

O terceiro item é “Alma em Suplício”, filme de Michael Curtiz de 1945 sobre uma mãe divorciada que abre um restaurante para batalhar na criação da filha mimada. Lembrou Regina Duarte como Raquel vendendo sanduíche na praia enquanto Maria de Fátima finge que não a conhece enquanto toma sol? Pois é.

O último capítulo da novela, há 35 anos, em 6 de janeiro de 1989, poria também fim ao maior “quem matou” do Brasil.

Desde a noite de Natal de 1988, em que a morte fez a novela bater um índice de audiência na casa dos 80 pontos, a principal pergunta no país era quem teria assassinado Odete Roitman.

Naquelas semanas, o Datafolha chegou a fazer duas pesquisas para pegar o pulso do espectador. A preferida do público para acabar com Odete era Fátima, com 22%. Mas haveria uma surpresa no Dia de Reis, e a escolha foi feita num telefonema de Dennis Carvalho para Gilberto Braga, conta o diretor no livro.

“‘Dennis, quem é a mulher que tem a cara de mais louca do elenco?'”, respondeu Braga. ‘Falei Cássia Kis.’ E ele, ‘acertou!’. A atriz adorou que Leila, sua personagem, tinha sido escolhida como a assassina da vilã da novela. Ao saber da decisão, Aguinaldo [Silva] também aprovou a escolha e sugeriu ‘não dá um tiro só, não, descarrega tudo que tem no revólver’.”

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BALZAC

Falando sobre “Louco Amor” (1983), ao ser questionado se o dinheiro era o principal personagem da novela, respondeu: “O dinheiro é a minha personagem principal desde que comecei a escrever para a televisão”. “Por quê?”, indagou o repórter: “Deixo para os estudiosos. Mas o dinheiro, sem querer comparar, também era a personagem principal de Balzac.”

Em 1974, à revista Amiga disse que Balzac era seu autor favorito. À Última Hora, em 1983, citou como preferidos Machado de Assis, Balzac e Charles Dickens. A [Artur] Xexéo, em 2019, elencou cinco romances que considerava fundamentais para um autor de novelas: “Dom Casmurro” (Machado de Assis), “O Primo Basílio” (Eça de Queiroz), “O Pai Goriot (Balzac), “A Ira dos Anjos” (Sidney Sheldon) e “Princesa Margarida” (Judith Krantz).

Lendo capítulos de “O Dono do Mundo”, a então jornalista e hoje roteirista Patrícia Andrade notou: “Realmente, foi um Balzac, um cronista dessa nobreza”. Gilberto era, de fato, um atento observador, mas também sabia onde se inspirar. Miguel Falabella conta ter aprendido uma lição importante, que Gilberto repetia sempre que havia alguma dúvida sobre caminhos a tomar pelos personagens de “Salsa e Merengue”: “Quando está na dúvida, pega o Balzac”.

Arnaldo Jabor, então colunista da Folha de S.Paulo, mais de uma vez tentou decifrar Gilberto. Em 1994, por causa de “Pátria Minha”, chamou-o de “um Balzac eletrônico”. Disse ainda: “Ele é um autor de novelas com importância balzaquiana. Ele nos lê de um ponto de vista irônico e sofisticado, com o mesmo amor que Balzac tinha pela aristocracia”.

RETRATO NA PAREDE

Gilberto escreveu “Dancin’ Days” tendo diante de si, na parede, um quadro com a imagem de sua mãe. É uma pintura de Geraldo Orthof, baseada numa fotografia de Yedda. Ela está sentada, ao lado de um vaso de flores simples, com o braço direito repousado na mesa, o rosto apoiado sobre a mão esquerda e os olhos direcionados para cima —talvez para o artista, talvez para o infinito.

O olhar é sério, mas não triste. Ela usa um vestido grená e cobre os cabelos com um lenço da mesma cor. Anos depois da exibição da novela, Gilberto fez uma autocrítica e reconheceu que simplificou demais o conflito entre os personagens. “O marido aparece como antipático e a esposa como vítima, quando na vida dos meus pais não teria sido assim”, disse.

GRANA

“Meu ideal de vida está num bom apartamento, carro, paz interior”, dizia Gilberto. “Não tenho vergonha nenhuma de querer dinheiro. Não tenho sonhos malucos de ter avião, helicóptero. Quero mais descanso possível para curtir meu apartamento, comer bem. Para você ter ócio, precisa ter grana.”

QUEM MATOU ODETE ROITMAN

Dennis [Carvalho, diretor] deixou para gravar a cena da revelação do “quem matou?” no dia da exibição do capítulo final [de “Vale Tudo”], em 6 de janeiro de 1989. A gravação terminou por volta das 14 horas. “Três dias antes, liguei para o Gilberto. Quem é o assassino? Você já mudou de novo?”, perguntou o diretor. “Dennis, quem é a mulher que tem a cara de mais louca do elenco?”, respondeu Gilberto. “Falei: Cássia Kis.” E ele: “Acertou!” A atriz adorou que Leila, sua personagem, tinha sido escolhida como a assassina da vilã da novela. Ao saber da decisão, Aguinaldo [Silva, um dos colaboradores da novela] também aprovou a escolha e sugeriu: “Não dá um tiro só, não. Descarrega tudo que tem no revólver”.

GILBERTO BRAGA – O BALZAC DA GLOBO

Preço: R$ 129,90 (352 págs.); R$ 64,90 (ebook)

Autoria: Artur Xexéo e Mauricio Stycer

Editora: Intrínseca

ALEXANDRA MORAES / Folhapress

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