Entre a raiva da direita e a da esquerda, fiquei com as Forças Armadas, diz Múcio

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Se alguém tentar constranger José Múcio Monteiro o chamando de preposto das Forças Armadas no governo, o efeito será o contrário, segundo o próprio ministro da Defesa. “Eu acho o máximo, eu gostaria que dissessem mais. Porque todas as vezes que dizem isso as Forças ficam satisfeitas. Veem em mim uma pessoa que trabalha por eles”, disse Múcio à Folha de S.Paulo.

Nos momentos mais críticos do primeiro ano de governo, conquistou a confiança dos comandantes militares ao se unir em torno deles contra críticas vindas de todos os lados, como no pós 8 de janeiro. “A esquerda com raiva, achando que as Forças Armadas quiseram dar um golpe, e a direita com raiva porque eles não deram o golpe. Então eu fiquei com as Forças Armadas, negociando com o Executivo e tentando defender as pessoas.”

É esse espírito de general sem farda que rege a visão do ministro em relação aos ataques às sedes dos Três Poderes. Ao passo que muitos veem nos oficiais-generais a raiz da intentona bolsonarista –ao transformarem as Forças Armadas em linhas auxiliares do governo do ex-presidente ou ao tolerarem e até apoiarem os acampamentos golpistas em frente aos quartéis–, para Múcio, eles salvaram o Brasil de um golpe.

Múcio descreve sua reação ao ser convidado para assumir o cargo por Lula, com quem diz manter uma “relação de fraterna amizade e confiança” -cantorias ao violão e sua prosa sedutora embalaram a parceria desde o segundo mandato do petista, do qual foi ministro das Relações Institucionais: “Olha, nunca passou isso pela minha cabeça, não servi ao Exército, nunca tive aproximação com as Forças Armadas, a não ser em relações pessoais no meu tempo de deputado, mas ele sabia com certeza o problema que aí estava”.

A tarefa começou espinhosa, com os comandantes militares do governo Bolsonaro se recusando a recebê-lo para a transição. Múcio teve de recorrer ao ex-presidente, que já afirmou ser “apaixonado” por ele, para quebrar as resistências –mesmo assim, o comandante da Marinha, Almir Garnier, não o recebeu.

A missão tornou-se mais complexa com o 8 de janeiro e nos dias posteriores, quando teve de demitir o comandante do Exército, Júlio César Arruda –episódio cujos detalhes Múcio conta a seguir.

PERGUNTA - Vinte e um dias depois de o comandante do Exército ter tomado posse, o sr. o demitiu. Como foi aquilo, o que ocorreu?

JOSÉ MÚCIO MONTEIRO – Foi um momento dificílimo, um sábado de manhã. Eu telefonei para o comandante, que é um homem de bem, general Arruda, mas o governo tinha perdido completamente a confiança nele, e ele é o acesso ao governo, e eu não tinha como levar isso sozinho. Foi aqui, disse que queria o lugar dele. Foi quando nós convidamos o general Tomás para assumir. No sábado, se não me engano, 21, quando o presidente Lula chegou de Roraima, eu estava no aeroporto com o general Tomás, apresentei-lhe ao presidente, e nós o empossamos.

Por que o presidente Lula havia perdido a confiança no comandante Arruda? Era só pela questão relacionada à nomeação do tenente-coronel Cid? Qual é a conexão com o 8 de janeiro, por exemplo?

J. M. M. – Eu acho que foi [também] por conta do dia 8. O presidente perdeu completamente [a confiança], alguns aliados dele perderam também, e fiquei eu só com o Exército. A esquerda com raiva, achando que as Forças Armadas quiseram dar um golpe, e a direita com raiva porque eles não deram o golpe. Então eu fiquei com as Forças Armadas, negociando com o Executivo e tentando defender as pessoas, até que a situação do comandante do Exército ficou insustentável.

No dia 21 de manhã, às 6h20, um telefone da minha casa tocou, era o presidente Lula zangado, porque o jornal da véspera tinha dado, que tinha saído num blog, que o tenente-coronel Cid estava voltando de Miami, que estaria sendo designado por um comando importantíssimo do Exército em Goiás, que ele não poderia assumir com a quantidade de suspeitas que havia com relação à conduta dele. E o presidente disse, eu quero saber se o Exército vai deixar esse rapaz tomar posse. Não é possível que você vai permitir. Quando ele desligou o telefone, eu senti que não havia mais clima de jeito nenhum. Estava entre o presidente da República e o Arruda. E eu era ministro do governo, eu precisava conduzir as Forças Armadas para que convergissem com a vontade do governo. A Constituição diz que o comandante supremo das Forças Armadas é o presidente da República. Então foi quando nós fizemos a modificação e colocamos o general Tomás.

Eu queria voltar ao dia 8. O sr. disse que estava…

J. M. M. – Você fique tranquilo em voltar ao dia 8, porque dele nós não saímos. Em 365 dias, não sei quantas entrevistas eu dei, mas todas elas tratam do dia 8.

Acha que esse tema já se esgotou?

J. M. M. – Olha, o problema é que cada um cria a sua história. Eu tenho absoluta certeza que não houve golpe porque as Forças Armadas não quiseram. Essa é a minha verdade. Porque, em todo movimento militar, os militares vão na frente e o povo vem atrás. Aqui, se eles quisessem um golpe, era cômodo, porque o povo foi na frente.

Poucos dias antes dos ataques, o sr. disse que os acampamentos eram manifestações da democracia e que até havia lá amigos e parentes seus…

J. M. M. – Eu sempre gostei de dizer a verdade. Havia parentes mesmo. Até hoje eu tenho relações sequeladas com alguns parentes por conta dessa questão eleitoral. Alguns parentes não entenderam que eu vim trabalhar com o presidente Lula, alguns continuam bolsonaristas radicais, sofri alguns gestos pouco elegantes algumas vezes, mas aquilo foi verdade. Eu disse que eram gestos democráticos, eu ia dizer o quê? Ia dizer que os militares estavam errados? Eu vim para conciliar, vim para juntar. Eu ia dizer que o ambiente era proibido, o ambiente não era permitido, eu já estava fazendo um desafio ao comandante que estava de plantão.

Comparando o que o sr. imaginava no calor da hora com o que sabe de hoje, de quem foi a responsabilidade por aquilo? Qual foi o papel, por exemplo, da Polícia Militar do DF?

J. M. M. – A Polícia Militar ficou encarregada de cuidar das ruas e não veio. Eu recebi uma informação às 14h do domingo de que a Polícia Militar toda estaria aqui nas ruas. Se a PM tivesse botado 1.000, 1.500 homens aqui, não teria acontecido aquilo. Mas não tinha ninguém. Veio um batalhãozinho de nada, sem comando, sem nada. As pessoas passavam quase que por cima dos policiais, ninguém obedecia, ninguém deu importância, ninguém respeitou.

Mas por que o Palácio do Planalto, que tem o batalhão da Guarda Presidencial, não estava guarnecido?

J. M. M. – O general Dutra telefonou para o Palácio, o general Arruda também, perguntando se precisava de mais gente para reforçar. Havia 1.000, sei lá, 1.500 homens aqui de reserva no Batalhão do [Comando Militar do] Planalto. Disseram, não, nós estamos aqui, não sei com quantos homens, isso aqui dá para segurar. E foi aquela hecatombe que ninguém imaginava. Quando viu-se o erro, já estava o erro acontecendo.

Quem disse que não precisava mais?

J. M. M. – Não sei. A informação de que não precisava veio do GSI. Não sei quem foi que deu essa informação.

O que poderia ter sido feito para evitar aquilo?

J. M. M. – Se a PM estivesse nas ruas, acho que aquilo não teria acontecido. Agora, eu lamento… pelo menos até agora, eu não tenho informação de quem financiou aquilo. Não havia um comando único, não havia uma liderança. O que mais me impressionava naquele dia é que você não tinha uma pessoa pra negociar, pra conversar, era verdadeiramente um bando de de baderneiros, foi um movimento de vândalos.

Qual o papel do ex-presidente Bolsonaro no 8 de janeiro?

J. M. M. – Eu não sei, as pessoas que se indignaram com a eleição do presidente Lula eram partidárias do outro candidato. Então ele pode não ter tido uma participação direta, mas inspirou algum movimento.

Acha que as Forças Armadas não têm responsabilidade alguma?

J. M. M. – Eles cumpriram o que a lei manda, eles hoje têm consciência de que o chefe deles é o presidente da República –a prova disso é que não houve sequer uma nota de um oficial num jornal se solidarizando com o movimento, absolutamente nada, pode ir em todos os blogs e jornais do Brasil.

Mas houve antes a nota dos comandantes endossando os acampamentos, na linha mais ou menos do que o sr. falou, de que eram uma manifestação democrática…

J. M. M. – Os acampamentos você ali tem a família… Se a gente tivesse mexido naquele acampamento, não estaria arrumando uma briga do Exército contra o Exército. Eu tinha certeza que havia parentes de generais lá nos acampamentos.

Eu passava lá quando vinha para o trabalho, passava lá quando ia de noite para casa, sábado e domingo eu ia dirigindo meu carro, passava com minha mulher para ver se tinha muita gente. No final de semana tinha esse turismo aqui do entorno de Brasília, o pessoal se vestia de verde e amarelo. E nós achávamos que não ia acontecer nada. E aconteceu que começaram a chegar ônibus de fora. Eu disse, não entra nenhum ônibus no comando do Exército. Essa falha aconteceu. Os ônibus não entraram, mas as pessoas entraram. O número de pessoas lá aumentou consideravelmente e resolveram marchar para cá.

Como é que o 8 de janeiro influiu, ou ainda influi, nas relações civis-militares no Brasil?

J. M. M. – O grau de desconfiança ficou para aqueles que não têm interesse na aproximação. Para mim é um dano maior. Deu discurso a muita gente que não tinha discurso. Ficou ruim para as Forças Armadas, porque eu tenho absoluta certeza de que as Forças Armadas tiveram um comportamento exemplar. Talvez pelo fato de ter anuído, poderia ter tido talvez um comportamento mais rígido na questão dos acampamentos. Mas não havia a garantia de que a Justiça permitiria botar todo mundo para fora. Então aquilo ali foi em nome do convívio dos quartéis.

Eu acho que o 8 de janeiro permitiu que as distâncias aumentassem. Foi um ano muito difícil, terminando com um clima absolutamente pacificado. Ficaram as lembranças, mas o dia 8 de janeiro está presente na cabeça de todo mundo. E vamos falar dele ainda por muito tempo.

E como é que o sr. tem visto aí reações ao 8 de janeiro por parte do STF, do Ministério Público Federal, do Congresso por meio da CPI?

J. M. M. – Eu torço que isso chegue a um fim. É como se fosse uma ferida que você todos os dias arrancasse as cascas para que ela continuasse sangrando. Eu acho que o Supremo está fazendo a parte dele, o Ministério Público também, e o Congresso Nacional já fez a CPI, já produziu um relatório. Agora, nós estamos aguardando o produto das investigações presididas pelo ministro Alexandre de Moraes.

Alguns falam, com certo sarcasmo até, que o sr., pela sintonia com as Forças Armadas, é um general sem farda. O que acha desse apelido?

J. M. M. – Eu acho o máximo, eu gostaria que dissessem mais. Porque todas as vezes que dizem isso as Forças ficam satisfeitas. Veem em mim uma pessoa que trabalha por elas. Um dia um competente deputado do PT disse isso num discurso, que eu era na realidade um ministro das Forças, não do governo junto às Forças. Você não pode imaginar como isso me fez bem junto às Forças.

O sr. acredita que haverá militares da ativa punidos pelo 8 de janeiro?

J. M. M. – Só quem vai dizer isso é o produto do trabalho do ministro Alexandre de Moraes em função da delação do Cid. Se o Cid disser e provar que havia militares da ativa envolvidos disso, eu acredito.

JOSÉ MÚCIO MONTEIRO, 75

Nascido no Recife, é formado em engenharia civil pela Universidade Federal de Pernambuco. Começou a carreira política na Arena, partido de apoio à ditadura. Pelo PDS, herdeiro da Arena, foi prefeito de Rio Formoso (PE) e deputado federal, cargo que exerceu por cinco mandatos consecutivos (1991 a 2011), por diferentes partidos. Foi presidente nacional do PFL (1992 a 1993), líder do PTB na Câmara e líder do segundo governo Lula (2007), do qual foi também ministro das Relações Institucionais (2007 a 2009). Indicado pelo petista para o TCU, foi ministro do tribunal de 2009 a 2020. É ministro da Defesa desde o começo do terceiro mandato de Lula

FABIO VICTOR / Folhapress

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