SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os 61 mil primeiros exemplares da Constituição de 1988 contavam com um prefácio assinado pelo deputado Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte. O texto foi suspenso das impressões seguintes a pedido de dois senadores, que argumentaram que o Congresso não tinha votado a inclusão.
Intitulado “Constituição Coragem”, o prefácio barrado dava as pistas dos mecanismos que protegeriam a democracia de uma nova ruptura, mais de 30 anos depois: “Eis a inovação da Constituição de 1988: dividir competências para vencer dificuldades, contra a ingovernabilidade concentrada em um, possibilita a governabilidade de muitos”.
A separação dos Poderes e o empoderamento das instituições que limitam o Executivo ajudaram a frear as intenções autoritárias do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que tentou minar a democracia de duas formas, segundo especialistas.
A primeira, mais tradicional e associada aos líderes autoritários do século 20, envolveu a consulta aos comandantes das Forças Armadas sobre a possibilidade de um golpe, como noticiou a Folha. A segunda, mais gradual e alinhada à cartilha autoritária do século 21, aconteceu por dentro do Estado e das instituições, como quando Bolsonaro patrocinou a PEC do voto impresso.
Ambas as estratégias falharam.
No primeiro caso, a cúpula das Forças Armadas não topou a empreitada autoritária. O cenário não era o mesmo de 1964, e a comunidade internacional já tinha deixado claro que reagiria a uma ruptura democrática.
No segundo, o desenho do sistema político impediu, ou ao menos retardou, um aprofundamento mais grave da crise.
Isso se deve, em parte, ao contexto em que foi elaborada a Constituição. Oscar Vilhena, professor da FGV Direito SP, diz que a Carta partiu do princípio que ele chama de “democracia defensiva”, com forte preocupação com um retorno ao autoritarismo.
Vilhena, que também é colunista da Folha, lembra que a transição democrática, com a elaboração da Constituição, envolveu um pacto entre setores progressistas e conservadores que desconfiavam um do outro. Por isso, a Carta é muito detalhada e busca garantir premissas democráticas, independentemente de quem esteja no poder.
“Quando você faz um contrato com uma pessoa em quem você tem absoluta confiança, às vezes ele não está nem escrito. Quando você faz com alguém de que você desconfia, o contrato é enorme. A Constituição brasileira é dessa segunda categoria”, diz o professor.
Por isso, a Constituição estruturou um sistema de freios e contrapesos bem definido, com separação de Poderes, Congresso bicameral, estados e municípios com alto grau de autonomia e STF com muito poder como os envolvidos na Carta não confiavam um nos outros, diz Vilhena, decidiram empoderar a instituição que zelaria pelo pacto.
“Eu não conheço um tribunal de cúpula em outro lugar do mundo que tenha tantos poderes quanto o Supremo.” A corte é constitucional, decide sobre recursos e julga políticos com foro especial. Além disso, três ministros do Supremo compõem o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
“Durante a normalidade democrática, isso irrita muito e com razão. Mas, no momento em que você tem um presidente desleal à Constituição, é muito importante que esse tribunal tenha ferramentas de contingenciamento do abuso presidencial”, diz Vilhena.
Foi assim que o STF e o TSE agiram durante o governo Bolsonaro, desde a suspensão de medidas provisórias e decretos até a imposição de multa por má-fé ao PL, quando o partido do ex-presidente pediu a suspensão de parte dos votos do segundo turno, após a derrota.
O STF é frequentemente lembrado como o principal ator que barrou a crise democrática, mas um empoderamento excessivo da corte também é uma distorção que pode ser prejudicial para a democracia a longo prazo.
O federalismo é outro fator que diminui a concentração de poder no chefe do Executivo e que, por isso, limitou as ações de Bolsonaro. Fabio de Sá e Silva, professor da Universidade de Oklahoma e pesquisador da crise democrática, lembra que esse mecanismo ficou mais evidente durante a pandemia da Covid.
A fragmentação partidária e o presidencialismo de coalizão, que exige a negociação com uma série de partidos para formar maiorias e que por isso dificulta a governabilidade, também frustraram a aprovação de projetos que poderiam acentuar a crise democrática como a PEC do voto impresso e aquele que permitiria o impeachment de ministros do STF.
“Demorou anos para que a elite política aprendesse mecanismos para estabelecer maiorias. Exige muita negociação e capacidade de diálogo, que Bolsonaro não tinha”, afirma Sá e Silva.
Em outros países onde líderes com tendências autoritárias conseguiram subverter a democracia por dentro do Estado, o sistema político dispunha de menos proteções.
É o caso da Hungria, onde o primeiro-ministro Viktor Orbán está no poder há 13 anos. Mesmo antes de Orbán, o país tinha um sistema eleitoral muito desproporcional. No pleito de 2010, o partido dele teve 53% dos votos, mas ficou com 68% das cadeiras no Parlamento.
Foi o suficiente para passar a toque de caixa uma nova Constituição que enfraqueceu instituições que limitavam o poder do primeiro-ministro, como a Suprema Corte. Se Orbán tivesse que negociar e formar consenso com 20 partidos, ele provavelmente não teria sido tão bem-sucedido ao menos não tão rapidamente.
O sociólogo Sérgio Abranches, autor do termo presidencialismo de coalizão, diz que lideranças do Congresso estavam dispostas a aprovar muitas das medidas defendidas por Bolsonaro, mas que a redução do número de parlamentares em cada bancada tornou mais difícil a formação de maiorias.
“O presidencialismo de coalizão contribuiu para impedir [o aprofundamento da crise], mas mais pelas suas fragilidades nesse momento do que por suas virtudes”, afirma.
Abranches também diz que a polarização política mostrou que Bolsonaro tinha apoio de um grupo de radicais, mas não da maioria da sociedade, o que barrou suas intenções mais autoritárias.
Vilhena afirma também que, diferentemente de países como a Hungria, o Brasil tem uma tradição democrática, ainda que tenha passado por golpe militar, o que dificulta a ascensão do autoritarismo. Ele lembra que, desde a época do império, havia competição entre as elites.
“De 1946 a 1964, a democracia é mediana, mas tem um grau de inclusão muito grande. O Brasil tem uma trajetória histórica de regimes democráticos ou semi-democráticos competitivos.”
Sá e Silva cita outro fator que ajudou a estabilizar a crise democrática: Bolsonaro teve Lula como adversário.
“Se não fosse um candidato com elevada densidade eleitoral, muito provavelmente Bolsonaro teria vencido a eleição”, diz.
As experiências de outros países mostram que a reeleição de um líder autoritário intensifica a derrocada da democracia.
Pouco antes das eleições de 2022, Bolsonaro insinuou que, se reeleito, poderia seguir outra tática autoritária, usada na ditadura militar e por líderes como Orbán, de aumentar o número de ministros do Supremo.
Sá e Silva afirma que a fragmentação do poder, como acontece no Brasil, apenas desacelera o autoritarismo, mas não o impede.
Ao final do mandato, a aproximação com Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, e o modelo de negociação de emendas parlamentares já davam a Bolsonaro mais influência.
“As agendas do bolsonarismo seguem fortes no Congresso. Se ele tivesse sido reeleito, essa agenda estaria validada socialmente e seria mais difícil para o Judiciário e a sociedade civil resistirem.”
ANA LUIZA ALBUQUERQUE / Folhapress