SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1983, quando ainda faltavam seis anos para a queda do Muro de Berlim e o início do colapso do bloco soviético, a então Tchecoslováquia vivia um incômodo histórico. Era para todos os efeitos um país da Europa Central e culturalmente ligado ao Ocidente. Mas o regime comunista o empurrava para o Leste Europeu e o orientalizava ao aumentar sua dependência da Rússia.
Nesse cabo de guerra, o que estava em jogo era a identidade da atual República Tcheca. O assunto foi ampla e profundamente discutido pelo escritor, dramaturgo e ensaísta Milan Kundera, morto no ano passado aos 94 anos, em um pequeno e precioso texto publicado na França em 1983.
“Um Ocidente Sequestrado ou a Tragédia da Europa Central”, editado agora pela Companhia das Letras, é muito mais que uma reflexão etnográfica. É um grito eloquente de liberdade de um intelectual que fez confluir a identidade tcheca com o oxigênio rarefeito sob o regime comunista.
Kundera foi um best-seller mundial nos anos 1980 com “A Insustentável Leveza do Ser”, mas também é o autor de 15 romances em tcheco e quatro outros em francês, além de seis peças de teatro e livros de ensaio.
Ele foi ainda um dos intelectuais relevantes da chamada Primavera de Praga, sufocada em 1967 pelas tropas soviéticas. Seus livros deixaram de ser publicados e ele, marginalizado, exilou-se na França, país que concedeu cidadania a ele. Magoado, considerava-se escritor francês.
Mas vejamos o que foi bem mais que um detalhe. As tropas russas, ao invadirem a Tchecoslováquia, não privilegiaram a mídia como forma de censura. Foram direto à jugular do país e fecharam todas as revistas literárias e culturais, veículos por meio dos quais se discutia a possibilidade de conciliar o socialismo e o fim da censura.
Em Praga, assim, a intelectualidade deixou de respirar. Até o Partido Comunista emburreceu.
A repressão militar russa também atingiu a Hungria, em 1956. E, em menor escala, fez o mesmo com a Polônia por três vezes, até 1979. Não é coincidência, portanto, que os três “pequenos países” da Europa Central sejam os mais vulneráveis face aos gigantes russos e alemães. Seus grandes vizinhos nunca tiveram dúvidas de que existiriam no século seguinte. Enquanto isso, até nas primeiras estrofes de seu hino nacional os poloneses afirmam que ainda não foram eliminados do mapa europeu.
Foi essa corda da identidade nacional que Kundera fez soar durante um congresso de escritores em 1967. Então, não reivindicou diretamente democracia. Mas evocou um período entre os séculos 17 e 19 em que a atual Boêmia sofria forte pressão para se germanizar, e o idioma tcheco -e sua própria cultura – precisou ser socorrido por intelectuais que militaram, com sucesso, por uma sobrevida.
O escritor retomou o argumento em 1983. Mas desta vez a ameaça, embora bem mais tênue, vinha da “russificação” das instituições. Moscou não tolerava dissidências -a sutileza de Kundera não entra nesses detalhes-, e a Hungria e a Tchecoslováquia foram horrorosamente punidas com invasões militares.
O escritor também relata o episódio que envolveu um amigo filósofo de quem a polícia tcheca confiscou mil páginas de um manuscrito. Ele e a vítima do confisco pensaram em lançar um apelo internacional para que as reflexões fossem devolvidas. Assustaram-se, contudo, ao concluir que inexistia um grande nome europeu respeitado por todos os lados. A ideia da Europa Central estava fraquejando.
Os húngaros, embora nunca saíssem do mesmo lugar, também eram europeus “transportados” simbolicamente para o leste. Mas resistiam. O texto de Kundera é aberto e concluído com o despacho do chefe da agência oficial de notícias húngara no momento em que, em 1956, as tropas do Pacto de Varsóvia invadiam e bombardeavam Budapeste. “Nós morremos pela Hungria e pela Europa”, escreveu ele em seu derradeiro despacho. Europa como cultura, e não Europa Oriental como prolongamento geográfico dos interesses soviéticos.
O fato é que a Europa Central, com suas fronteiras difusas, tem como maior característica uma grande diversidade cultural dentro de um território pequeno. O que contrasta, diz Kundera, com a extinta União Soviética, onde um imenso território abrigava uma diversidade cultural pequena.
O escritor sublinha, por fim, o peso do judaísmo dentro desse lugar em que milhões de vidas foram ceifadas pelo nazismo. Os judeus (Franz Kafka, Gustav Mahler, Sigmund Freud) foram “o principal elemento cosmopolita e integrador da Europa Central”. Milan Kundera é lacônico nesse momento do texto, mas suas palavras não deixam de ser comoventes ao relatar esse “cimento cultural” de uma região do globo de onde brotaram suas raízes.
JOÃO BATISTA NATALI / Folhapress