FOLHAPRESS – Uma santa apareceu em Buenos Aires. A virgem se desvelou não para a elite argentina, acastelada em bairros como Palermo e Recoleta, e sim para uma travesti negra em uma “villa miseria”, nome dado ali às favelas.
A premissa do romance “Nossa Senhora do Barraco” fisga de imediato e a autora, Gabriela Cabezón Cámara, não deixa o leitor escapar, amarrando-o com o enredo de Cleópatra, a prostituta vidente de El Poso. Lançado em 2009 na Argentina, é o primeiro romance da autora, que a sagrou como uma das vozes contemporâneas do país.
O livro se passa na capital portenha, mas podia ser também São Paulo, Lima ou Caracas. É um enredo de sangue escorrendo por veias abertas, que serve de lembrete de que o continente tem em comum mais do que as línguas latinas. Compartilha também a pobreza e a violência urbana.
A maior parte da história é contada pela jornalista Qüity, da imprensa sensacionalista argentina, que chega a El Poso em busca de uma boa reportagem. Acaba ficando por lá depois de conhecer a carismática Cleópatra, que teve a visão de Nossa Senhora depois de um episódio de violência policial. A travesti lidera essa comunidade pobre e escanteada.
É Cleópatra descrita como “pura alegria brilhante e esplêndida e maricona” quem decide cavar uma piscina no meio da lama. Os moradores então roubam carpas dos ricos da cidade e criam peixes para comer. A vidente soluciona assim a fome. Eles erguem uma imagem de concreto da santa, que dá nome ao livro (em espanhol, era “La Virgen Cabeza”).
O reservatório se torna tão essencial para a população que, diz Qüity, vira uma espécie de Fontana di Trevi. A jornalista diz que os “pivetes” de El Poso “nunca saíam para afanar sem antes se pôr de costas para o reservatório”.
Quem vive em outras cidades latino-americanas já adivinha, de antemão, que essa história não pode acabar bem. A prosperidade da comunidade se choca com os interesses de políticos, policiais e especuladores imobiliários.
O texto alterna duas vozes. A maior parte do livro é narrada pela jornalista, com um texto mais neutro, no registro formal da língua. Mas há também intervenções da voluntariosa Cleópatra, que corrige o manuscrito da repórter. Na sua fala, o idioma é livre e de cunho popular e inclui, ainda, palavras em inglês e referências ao gênero musical da cumbia.
O que as duas narradoras têm em comum é a poesia das palavras. Qüity, por exemplo, descreve assim o cenário de El Poso: “Paus, garrafas, sargaços, camisinhas usadas, madeira das docas, bonecas sem cabeça, o reflexo da colagem de detritos que a maré deixa amontoados quando baixa”.
E a vidente Cleópatra diz mais adiante que a morte das pessoas na comunidade é “super fast” (bem rápida). “Ninguém chega aos cinquenta”, porque tem sempre “bala ou facada, transformando-nos em terra, fumo, poeira, sombra, nada”.
Chama a atenção no texto a sensibilidade de Cabezón Cámara para narrar a vida de uma protagonista tão marginalizada. Cleópatra quase morreu na infância sob a violência de um pai abusivo e sofreu também nas mãos da polícia. Mas essa grande mulher negra se impõe, e sua relação com a Virgem é aceita com naturalidade.
Impressiona, também, a jornada da repórter Qüity, que passa a fazer parte da comunidade tão diferente de Palermo, onde ela tem um flat. Nunca consegue voltar para “o outro lado do mundo, o daqueles que vivem fora dos pequenos Auschwitz que Buenos Aires tem a cada dois quarteirões”.
O romance parece estar ambientado em algum momento dos anos 1990, durante o governo de Carlos Menem. Mas, como boa ficção, toca em feridas contemporâneas. O noticiário paulista e carioca transborda de histórias que poderiam acontecer na El Poso dessa “Virgem do Barraco”.
NOSSA SENHORA DO BARRACO
Avaliação Ótimo
Preço R$ 60 (158 págs.)
Autoria Gabriela Cabezón Cámara
Editora Moinhos
Tradução Silvia Massimini Felix
DIOGO BERCITO / Folhapress