CAUCAIA, CE, E RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Os muros do condomínio Panorama Privée, na praia de Icaraí, resumem as mais de três décadas de evolução da erosão costeira de Caucaia (CE), cidade vizinha a Fortaleza, e as primeiras consequências da construção de três espigões pela prefeitura para tentar reter a areia da orla.
A síndica do condomínio, Elisabete Sampaio, conta que anos atrás o local convivia com danos ao muro em razão das dunas da praia. Em dezembro de 2022, após a construção das estruturas de pedra, o desabamento ocorreu em razão do avanço do mar.
“Somos leigos, mas achamos que é devido ao espigão que foi feito, que fez uma meia lua de praia. O vento está levando a areia [que não existia antes naquela faixa] para a rua, do lado do nosso condomínio”, diz Elisabete.
Em abril de 2022, a prefeitura iniciou a construção de três espigões ao custo de R$ 44,3 milhões, a maior parte custeada pelo governo estadual. Eles têm formatos diferentes do tradicional. Em vez de perpendiculares à praia, forma mais habitual, são curvos.
A obra concluída em oito meses criou as chamadas “praias de bolso”, em que uma faixa de areia é recuperada próxima à saída das pedras em direção ao mar. Mesmo que “emoldurada” pela estrutura, os banhistas da cidade comemoraram a volta da areia.
A cozinheira Lívia Rodrigues e o marido, o porteiro José Aderson Silva, aproveitavam o sol e o mar no início de janeiro como não faziam há muitos anos. O casal mora em Fortaleza e deixou de frequentar a praia do Icaraí por conta da erosão.
“O mar era forte e quase não tinha faixa de areia. Agora a praia está ótima para o banho. Sem as ondas fortes, ficou bom para pescar”, diz ela, que chama a faixa de areia de “prainha”.
Silvia Maria da Silva, dona e moradora na barraca Naja, lembra que, em 2018, acordou com a água do mar batendo na cama e arrastando tudo. Uma onda destruiu mesas e deteriorou parte da estrutura de concreto do empreendimento.
“Se não fossem esses espigões, isso aqui já tinha acabado. Não existiriam mais essas barracas.”
Caucaia é uma das referências no Nordeste quando se fala em avanço do nível do mar. É também um símbolo dos efeitos das intervenções em municípios vizinhos, muitas vezes ignorados nas obras feitas ao longo do litoral, segundo especialistas.
Por décadas a cidade tentou enfrentar o problema. Usou enrocamentos (estruturas de pedras paralelas à costa) e “bagwalls” (estruturas de concreto) para barrar as ondas. As técnicas são criticadas por agravarem a perda de areia, em razão do aumento do impacto da água na orla, causando o chamado efeito reflexivo.
A construção dos espigões, realizada em 2022, era uma demanda antiga de moradores da cidade, inspirados nas intervenções feitas na capital e apontadas como uma das causas da erosão nas praias de Caucaia.
Fortaleza construiu 11 espigões entre as décadas de 1970 e 1980 para conter a areia em suas praias, após erosão atribuída às obras do porto de Mucuripe, construído na década de 1930.
De acordo com o geógrafo Davis Paula, da UECE (Universidade Estadual do Ceará), eles são a origem da erosão das praias de Caucaia, por terem retido os sedimentos que naturalmente se deslocavam pelas correntes marítimas em direção à cidade.
Agravaram o problema, diz ele, as barragens e ocupações nas margens do rio Ceará, que fica entre as duas cidades e também contribuía para a manutenção da praia de Caucaia.
“Os moradores observaram que Fortaleza construiu vários espigões e lá resolveu o problema. Então eles queriam espigões também”, afirmou Paula, que acompanha a erosão na região há mais de dez anos.
Ele afirma que, após as obras, a praia vizinha, da Tabuba, já enfrenta efeitos semelhantes. O mesmo diz o garçom Francisco Ednaldo Martins, que trabalha há 30 anos na região.
“Diminuiu a força do mar aqui [no Icaraí]. Embora que lá na frente, na área da Tabuba, está deteriorando. Pouco tempo depois da construção, a gente vê que o mar começou a avançar lá, uns 300 a 500 metros depois do espigão.”
Segundo o professor da UECE, o estudo de impacto ambiental não avaliou de forma completa os impactos gerados pelos espigões nas praias vizinhas. Também não considerou os efeitos de uma eventual demora na conclusão do projeto total, que prevê 11 estruturas de pedra e aterro –ainda não há verba definida para a conclusão.
“No Icaraí, tínhamos trechos que não havia erosão costeira. Tinha 80% com erosão, e uns 20% sem erosão nenhuma [no final da praia], local do terceiro espigão. Ali a dinâmica da praia modificou e foi negativa. Houve erosão da praia. As ondas começaram atingir a dunas que estava logo atrás. Tínhamos uns 60 metros de dunas. Esse pacote de areia foi todo erodido”, afirma Paula.
“Todas as obras feitas em Caucaia foram por pressão política e popular, já que as pessoas estão tendo ali seu patrimônio levado pelo mar. Essas pressões todas provocam uma aceleração no processo de definição. Se você vai para uma reunião com os moradores, ninguém tem paciência para esperar um estudo e apresentar a melhor solução.”
O geógrafo afirma ainda que, durante a realização das obras, um campo de dunas teve de ser “rasgado” para a passagem de caminhões com pedras. A formação é apontada por especialistas como uma espécie de reserva de areia para as praias, além de uma proteção natural para a área urbana.
Em nota, a Prefeitura de Caucaia afirmou que a avaliação sobre a obra só poderá ser feita após a construção de todos os 11 espigões. Disse ainda que o estudo de engenharia foi feito pelo INPH (Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias) e o ambiental pelo Instituto de Estudos, Pesquisas e Projetos da UECE.
O município diz ainda que o condomínio Panorama Pirvée já sofria com ação do mar antes da construção dos espigões. Em relação às dunas danificadas durante as obras, afirmou que elas foram naturalmente recompostas em razão da ação dos espigões.
O secretário de Infraestrutura de Fortaleza, Samuel Dias, afirma que a erosão de Caucaia tem mais relação com a exploração do rio Ceará do que os espigões da capital.
Na capital, as praias continuam em alteração. Em 2019, a prefeitura da capital iniciou um novo projeto para ampliar a faixa de praia. Aumentaram o alargamento existente na praia de Iracema, além de ter realizado engorda em outras praias da costa, ao custo de R$ 70 milhões e 1,2 milhão de m³ de areia.
Parte do novo aterro recebeu infraestruturas urbanas, como ciclovias, quiosques e calçadões, intervenção comum em outras praias alargadas no país. Os espigões agora serão objetos de licitação para exploração da iniciativa privada.
“Modéstia à parte, a urbanização tornou esse trecho da praia uma das orlas mais bonitas do Brasil”, disse o secretário de Infraestrutura de Fortaleza, Samuel Dias.
No último dia 11 de janeiro, contudo, a água do mar avançou pelo calçadão e atingiu carrinhos de ambulantes, quiosques e restaurantes em um trecho da Praia de Iracema. O fenômeno, contudo, foi apontado como natural, já que a ressaca do mar coincidiu com o nível máximo da maré.
As estruturas construídas na orla minimizam parcialmente os efeitos da ressaca, mas a eficiência é baixa porque eles não são projetadas para proteger o continente da inundação, apenas da erosão.
O uso urbano e privado dos alargamentos é alvo de críticas de alguns especialistas. O professor Paulo Pagliosa, do Núcleo de Estudos do Mar da UFSC, afirma que esta é uma das evidências de que as intervenções do tipo no país têm objetivos comerciais, e não ambientais ou de proteção da costa.
“Alargar a praia não é trabalhar com a natureza. É com o turismo e com o mercado. Trabalhar com a natureza seria restaurar o ambiente o praial [com dunas e restingas].”
SÉRIE MOSTRA EFEITO DE OBRAS EM PRAIAS BRASILEIRAS
A série Praias Alteradas ouviu especialistas e autoridades envolvidas nas dezenas de obras realizadas nos últimos anos no litoral do país. As reportagens mostram quais os motivos que levaram aos investimentos, as falhas nos projetos e possíveis consequências futuras com a alteração da costa brasileira.
Os textos também vão apontar quais os impactos locais das intervenções e como muitas falhas se repetem em diferentes municípios do país, que não contam com uma integração regional ou nacional para combater a erosão costeira.
BEATRIZ JUCÁ E ITALO NOGUEIRA / Folhapress