SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – “Tem gestores municipais que nem se dão conta que dentro de seu município têm comunidades quilombolas”. A constatação sobre uma ignorância geral acerca dos quilombos e de seu papel formativo na história do Brasil é um dos pontos percebidos nas pesquisas do professor da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), Eduardo Santana.
Ex-diretor do bloco afro Malê Debalê e atual conselheiro municipal de educação em Salvador, o especialista trabalha para que haja um diálogo real entre as escolas e os conhecimentos da educação quilombola.
“O quilombo é um espaço de construção de conhecimento, é o que eu defendo e pesquiso. O que muitas vezes acontecia é que os professores que estavam em escolas que atendiam esses alunos estavam completamente distantes desse território quilombola. Professores que sequer sabiam que aquele aluno que estava na sua escola era um quilombola”.
As comunidades estudadas por ele, como Barra, Bananal e Riacho das Pedras, no município de Rio de Contas (BA), compartilhavam de métodos e estruturas de ensino que se baseavam na ancestralidade. A escuta aos mais velhos, o respeito à natureza, a religiosidade e a oralidade são aspectos típicos de uma educação quilombola e que garantem respeito a própria história, conforme explica o professor.
“O que é a oralidade se não a garantia de que eu estou contando uma história que eu ouvi do meu avô, de meu bisavô e que tem um valor de verdade? Essa oralidade não é apenas uma voz do que foi dito. Mas é uma voz no passado, que que é retransmitida no presente e para o futuro, a partir de um sentimento de respeito a essa fala mais antiga”.
Entre 2005, data de seu mestrado, e 2023, o especialista percebeu um déficit no conhecimento acerca dos saberes quilombolas dentro das escolas.
“Isso parte de um desconhecimento no Brasil ainda hoje com a questão de quilombo, porque ainda se afirma o quilombo como aquele lugar do negro que fugiu, como aquele espaço do negro bandido, mau-caráter, o negro fugitivo. Quando você ainda entende dessa forma, você tem dificuldade de perceber a dimensão territorial dessa presença quilombola em todo o Brasil, inclusive nas capitais”.
Os estereótipos e a falsa ideia de que quilombos são territórios isolados também se devem ao intenso processo de urbanização que engoliu os territórios quilombolas no país, como observa ele.
“O que hoje nós chamamos de subúrbio, de gueto, favela, são os antigos quilombos que foram sendo agregados à medida que as cidades foram crescendo. As cidades engoliram os quilombos, colocaram para dentro dela, mas em uma perspectiva ainda de um lugar distante e de pouco acesso a políticas públicas”.
Para o professor, a divulgação do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o primeiro a contemplar informações da população quilombola no país, tem papel determinante no futuro do trato das demandas dos quilombos.
“Poder trazer dados mais próximos a estados e municípios garante a possibilidade de aplicações, de recursos e políticas públicas voltadas para as especificidades”, afirma.
De acordo com o IBGE, o Censo só trouxe as informações dessa parcela da população a partir deste ano porque os registros administrativos sobre a população quilombola eram restritos. Não existia um mapeamento de referência que viabilizasse o processo de planejamento e testagem de uma pesquisa adaptada às necessidades da população quilombola.
A inclusão finalmente aconteceu após anos de pressão de entidades quilombolas ao Instituto, o qual travou um diálogo direto com representantes de todo o país como a Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos) e a Fundação Cultural Palmares para que a sondagem deste ano acontecesse.
A presença espaçada dos quilombos no território e a falta de reconhecimento dessas áreas foram reforçadas pelos dados do Censo, que identificou que dos 1.696 municípios têm quilombolas, mas apenas 326 contam com territórios delimitados. Somente 12,6% da população quilombola do Brasil reside em territórios oficialmente reconhecidos.
Para ele, é necessário capacitar os educadores adequadamente para a inserção da educação quilombola e reverter os impactos da falta de informação.
“Precisamos fazer um investimento nessa formação de professores para dar conta dessas diretrizes desta modalidade, é preciso avançar na perspectiva dos gestores públicos. Muitos municípios têm dificuldade de entender que aquele território é quilombola e, muitas vezes, nem se dão conta que na própria cidade tem comunidades quilombolas”.
A vivência à frente do Malê Debalê também promoveu um olhar mais amplo para os quilombos. Buscando entender as particularidades dos blocos afros, o professor traçou paralelos com as próprias nuances das comunidades quilombola estudadas.
“Você vai percebendo que essas especificidades traduzem uma identidade. Eles têm princípios comuns, mas são as especificidades que garantem identidade. Quando vou para o quilombo, faço essa transposição. É o modo, o jeito, a forma. Cada quilombo tem as suas pertenças”.
A Bahia foi o estado de maior população quilombola de acordo com o Censo. 29,9% da população do país autodeclarada dessa forma está no estado, o equivalente a 397.059 pessoas.
“Na história dos quilombos na Bahia –e aí pode estender para o Brasil– você vai ter uma presença e um contingente, historicamente falando, com uma maior intensidade dessa presença africana na Bahia, e não só na cidade de Salvador, mas pensando o estado como todo. A presença negra no estado se confunde com a própria história da formação do território da Bahia”, diz o professor.
A capital baiana é a segunda cidade mais quilombola de todo o país. A presença expandida pelo estado foi comprovada pelo Censo 2022, que revelou que – contando com Salvador –5 das 10 cidades mais quilombolas também estão na Bahia.
O IBGE ainda irá lançar as informações de escolaridade da população quilombola. Por enquanto, somente os dados sobre a distribuição desta população pelos municípios e territórios quilombolas do país foram divulgados.
MARIANA BRASIL / Folhapress