SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Meses após enfrentarem a resistência de tribunais à resolução que criou a alternância de listas exclusivas de mulheres nas promoções de juízes para a segunda instância pelo critério de merecimento, magistradas de todo o país têm se articulado para ampliar a mobilização pela causa.
A meta é assegurar o cumprimento da regra aprovada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça), que passou a valer neste mês, promover formação sobre o tema e fomentar o diálogo para avançar na agenda da paridade de gênero. Coletivos independentes têm sido criados.
A pressão feita por elas foi um dos fatores que contribuiu para a aprovação do texto. Em setembro, magistradas criaram um grupo de WhatsApp, coletaram assinaturas e fizeram vaquinhas para custear a ida de representantes a Brasília para acompanhar as sessões de votação do texto.
Apesar de já existirem representações de mulheres nas principais associações de magistratura no país, parte das juízas entende que a maioria desses grupos não defendeu a resolução por conta da pressão de associados homens.
Diante da incerteza sobre o apoio diante de eventuais episódios de descumprimento à regra, passada a aprovação no CNJ, as juízas decidiram tornar o Movimento Nacional pela Paridade um coletivo independente. Para isso, fizeram uma carta de princípios e elegeram nove representantes e duas suplentes para coordenar o grupo.
“O movimento se corporificou de forma magnânima, porque a gente sofreu ou sofre os mesmos preconceitos, as interrupções nas nossas falas e uma concorrência que não é leal conosco, com a nossa família e com o nosso currículo”, afirma a juíza Elayne Cantuária, do TJ-AP (Tribunal de Justiça do Amapá), uma das coordenadoras eleitas.
Segundo ela, a iniciativa soma 1.600 integrantes dos diferentes ramos do Judiciário e também está aberta a magistrados homens. “O movimento não é contra ou a favor de ninguém, somente a favor da paridade. É um movimento participativo e dialogal”, diz.
O juiz Eldom Santos, do TJ-PR (Tribunal de Justiça do Paraná), era vice-presidente do Fonavid (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica) quando soube do grupo e passou a integrá-lo.
“A presença de mulheres em espaços de poder pode trazer um olhar mais diverso para problemas estruturais do país e facilitar o combate às violências domésticas, às estruturas racistas e à homotransfobia”, diz.
Ele afirma que a maioria dos colegas concorda com as demandas das juízas e que é preciso ampliar o debate sobre o caráter estrutural da violência de gênero.
“Ao longo do tempo, as masculinidades foram favorecidas por essa estrutura e é preciso agora pensar sobre o ponto de vista da igualdade”, conclui.
Cantuária afirma que, a partir deste mês, o movimento deve buscar agendas com representantes de diferentes instituições e movimentos das carreiras jurídicas pelo país.
“A gente precisa que esses braços cheguem nos estados, nas Justiças Federais, para a partir disso construir as soluções necessárias”, afirma.
No Paraná, o Coletivo Antígona, formado por 200 das 358 juízas do estado, foi o primeiro grupo independente de magistradas no país, criado em julho de 2022.
“O coletivo nasce dessa descoberta de que existem lugares em que nós não nos sentimos representadas e precisaríamos falar por nós mesmas, não pela associação e não pelo tribunal”, diz a juíza Laryssa Copack, que integra a coordenação do grupo com outras seis magistradas.
Divididas em comissões, as juízas trabalham para ampliar a compreensão sobre o chamado “teto de vidro”.
“Muitas vezes a mulher não assume um cargo de comissionado, por exemplo, de auxiliar a cúpula, porque ela não consegue trabalhar 12 horas por dia sem ter o suporte de alguém da família para buscar os filhos na escola”, diz.
No estado, elas conseguiram a aprovação da paridade em bancas de concurso do tribunal estadual e promovem encontros para ampliar a compreensão sobre o tema. Em março, o Antígona fará um encontro nacional de coletivos no país.
O grupo serviu de referência para o Grupo Maria Firmina, no Maranhão, em agosto. Coordenadora do movimento, a desembargadora Sônia Amaral afirma que a partir de seu ingresso na segunda instância do Tribunal de Justiça do Maranhão percebeu que precisava fazer algo para mudar a baixa representatividade de mulheres nessa esfera.
“A gente tem que construir conhecimento sobre isso. Nós temos algumas poucas magistradas que são contra a luta pela paridade. Ainda temos que nos preparar para discutir a questão”, diz. Das 116 magistradas no estado, 113 fazem parte do grupo.
Amaral chama atenção para os critérios subjetivos que são usados nas promoções por merecimento nos tribunais e para pautas que interessam a elas e acabam discutidas em almoços e jantares dos quais não participam.
Outro grupo criado no último ano foi o Sankofa, formado por 120 magistradas em atividade e já aposentadas da Justiça estadual, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal em São Paulo que integram o Movimento Nacional pela Paridade, que deve ser formalizado no próximo mês.
“As magistradas perceberam um denominador comum, que é a discriminação de gênero institucionalizada no Judiciário, com relação ao gênero e também étnico-racial”, afirma a desembargadora aposentada Angélica de Maria Mello de Almeida, do comitê provisório do grupo.
Em setembro, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) pediu o adiamento do debate sobre a resolução para promoções. Na maior corte do país há 356 desembargadores na segunda instância. Desses, 286 são magistrados de carreira, dos quais 30 são mulheres, o que representa menos de 10%.
Nesta semana, o tribunal deve publicar o primeiro edital com lista exclusiva de mulheres que chegou ao conhecimento do CNJ. O processo foi aprovado pela corte na terça-feira (16), como mostrou a Folha.
“Essa resolução do CNJ dá a essa discussão um patamar diferenciado ao dizer que o problema da discriminação de gênero existe e precisa ser enfrentado”, afirma Almeida.
A presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Luciana Conforti, afirma que a entidade foi a única representante da magistratura nacional a manifestar apoio à época ao texto.
Ela afirma que entende a criação do movimento nacional como algo mais amplo e não como divisionismo. Para este ano, Conforti acrescenta que acompanhar a aplicação da resolução será uma prioridade do Anamatra Mulheres.
A reportagem tentou contato com a Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e com a AMB (Associação de Magistrados Brasileiros), mas não teve resposta.
Na época da aprovação da nova regra no CNJ, o conselho que reúne os presidentes dos 27 tribunais de Justiça dos estados e do Distrito Federal foi o principal opositor de alterações. Em nota técnica assinada em setembro, a entidade dizia que a modificação deveria ser feita por meio de lei formal e estava fora do âmbito normativo do CNJ.
Afirmou ainda que na Constituição há “silêncio eloquente acerca dos critérios de gênero para a análise da antiguidade e merecimento” nas promoções de magistrados para a segunda instância.
O que diz a nova regra de promoção de juízes de carreira
O Conselho Nacional de Justiça aprovou em setembro, sob a presidência da ministra Rosa Weber, hoje aposentada, uma regra que prevê alternância de gênero na promoção por merecimento de juízes de carreira. As vagas na 2ª instância são abertas a partir da saída de um magistrado, o que pode ocorrer por morte, aposentadoria voluntária ou compulsória, aos 75 anos. O preenchimento desses postos é alternado entre antiguidade, que considera a data de entrada no tribunal, e merecimento, onde há influência política e critérios subjetivos. Com a nova regra, se houver na segunda instância dos tribunais da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho menos de 40% de mulheres, a corte deverá aplicar a ação afirmativa. A regra começa a ser aplicada com base na última promoção por antiguidade. Se o promovido foi um homem, a próxima promoção por merecimento será feita a partir de uma lista exclusiva de mulheres. A regra não vale para os Tribunais Regionais Eleitorais e da Justiça Militar. O objetivo é alcançar a paridade de gênero nos tribunais. Assim que o número de mulheres chegar a 40%, a corte não será mais obrigada a aplicar a regra.
GÉSSICA BRANDINO / Folhapress