SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A proliferação de guerras e o agravamento da crise climática em 2023 mantiveram o Relógio do Juízo Final no nível mais próximo do apocalipse desde que foi criado em 1947 por renomados cientistas envolvidos com o programa da bomba atômica americana, cientes da era que legaram ao mundo.
Anunciada nesta terça (23) pela ONG Boletim dos Cientistas Atômicos, a medição 2024 diz respeito aos fatos do ano anterior. O Relógio segue marcando 90 segundos para a meia-noite que simboliza a inviabilização da vida humana na Terra.
“Seguimos com uma tendência rumo à catástrofe nuclear e o ano passado foi o mais quente da história”, disse a presidente do Boletim, Rachel Bronson. “Mas houve algumas boas notícias. Os renováveis dominam os novos investimentos em energia”, completou o especialista Ambuj Sajar (Instituto de Teconologia da Índia).
Assim como em 2023, os cientistas apontaram os riscos do avanço da IA (inteligência artificial) para a segurança global, incluindo desinformação, e como estudos de biossegurança podem inadvertidamente gerar uma pandemia como a da Covid-19.
No ano passado, após dois anos, os ponteiros haviam mexido para aquele que era então o menor índice da série histórica. O motivo central era a Guerra da Ucrânia, lançada por Vladimir Putin com uma série de ameaças nucleares a quem se colocasse em seu caminho, em fevereiro de 2022.
Não que a situação estivesse muito melhor: em 2020 e 2021, o Relógio já estava no pior momento de sua história, cortesia da ameaça de guerra na Europa, da pandemia de Covid-19 e da irresponsabilidade climática de negacionistas como o então presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (PL), citado nominalmente como um risco ao planeta.
À carnificina na Ucrânia se soma o massacre perpetrado pelo Hamas em Israel em 7 de outubro e a consequente obliteração da Faixa de Gaza, uma crise que se espalhou por todo o Oriente Médio e arrisca virar uma guerra regional.
Como a Folha de S.Paulo mostrou, 2023 foi o ano de violência mais generalizada no mundo desde a Segunda Guerra Mundial, e o terceiro pior em termos de mortalidade em conflitos neste período.
A Guerra Fria 2.0 pontificada por EUA e China, iniciada em 2017 por Donald Trump, seguida por Joe Biden e que poderá voltar às mãos do republicano na eleição deste ano, eleva tensões. Conflitos com grande potencial também viram acirramento, como na troca de ameaças atômicas entre as duas Coreias e na perene suspeita de que a China invadirá Taiwan.
Em sua origem, o Relógio remetia a essas questões geopolíticas, no caso o temor de um holocausto nuclear na Guerra Fria. Estiveram em sua criação nomes como os dos físicos Albert Einstein e J. Robert Oppenheimer, o pai da bomba atômica cuja vida inspirou o celebrado filme de Christopher Nolan em 2023.
Em 2007 a conta do apocalipse passou a considerar também os efeitos da crise climática, largamente associada às emissões industriais de carbono e outras ações do homem na natureza.
O ano passado marcou um ponto de inflexão retórica na forma com que países tratam do problema, dado que foi o mais quente no registro de série histórica com medições científicas, em 1850. As ondas de calor ou frio extremos, interligadas, e tragédias associadas a eventos extremos passaram a ser um item permanente do noticiário.
Temas mais recentes, em termos históricos, estão no debate. Na questão da IA, o painel que analisou os riscos avalia que, apesar dos avanços rápidos na tecnologia, ela ainda está nas mãos humanas, o que em teoria garante algum nível de controle. O mesmo foi dito sobre a biossegurança.
Por evidente, como Bronson e outros cientistas presentes ao anúncio disseram, o prospecto é sombrio. Durante a Guerra Fria, apesar da chamada vigência da doutrina MAD (destruição mutuamente assegurada, na sigla inglesa, que também forma palavra “louco”) entre Estados Unidos e União Soviética, o mais próximo da meia-noite que o relógio ficou foi em 1953, dois minutos.
A crise mais famosa do período, a dos mísseis soviéticos em Cuba de 1962, paradoxalmente levou os ponteiros para um de seus níveis mais baixos, 12 minutos para meia-noite, porque o Boletim considerou que sua solução estabeleceu um novo nível de comunicação e desescalada entre os rivais. Na história, o mais distante do fim que a humanidade teve na contagem simbólica foi em 1991, quando a Guerra Fria acabou e os ponteiros ficaram a 17 minutos da meia-noite.
As medições do Relógio só passaram a serem anuais em 2015. O Boletim, que tem diversas publicações acadêmicas sobre seus apocalípticos temas, decide a marcação do Relógio após duas reuniões todo ano de um painel de 17 cientistas de diversos países.
IGOR GIELOW / Folhapress