Catedral da Sé, 70, tem histórico contra ditadura e presente marcado por polarização

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Demorou, mas chegou. Após 41 anos em obras, a Catedral da Sé contou com o agnóstico Getúlio Vargas, presidente do país, o católico Juscelino Kubitschek, então governador de Minas, Jânio Quadros, prefeito da capital, e Lucas Nogueira Garcez, governador de SP, em sua inauguração, no dia 25 de janeiro de 1954. Uma cerimônia “com toda a pompa”, descreveu a Folha da Manhã na ocasião.

Duas guerras mundiais e uma economia global engolida pela queda na Bolsa de Nova York, em 1929, ajudaram a procrastinar a abertura do templo, que vira septuagenário neste feriado de 25 de janeiro –aniversário de 470 anos de São Paulo.

As proporções impressionam: são 111 metros de comprimento por 46 metros de largura, quase meia tonelada de pedraria que incluiu mármores variados e ônix, mais uma cripta subterrânea para abrigar os restos mortais de todos os bispos católicos de São Paulo, de dom Bernardo Nogueira, em 1748, a dom Cláudio Hummes, dois anos atrás. Lá está também o corpo do cacique Tibiriçá, que ajudou a fundar a cidade de São Paulo, em 1554, após ser batizado por jesuítas com o nome cristão Martim Afonso.

As dimensões históricas também são superlativas. Ali dom Paulo Evaristo Arns, o arcebispo de São Paulo daqueles tempos, conduziu ao lado do rabino Henry Sobel e do pastor Jaime Wright um ato ecumênico para Vladimir Herzog, em 1975. Um dedo na cara da ditadura, que tentou emplacar a versão de que o jornalista assassinado pelos militares tinha se suicidado.

Mais de 200 mil pessoas deram um novo golpe no já combalido regime ao se reunirem em frente à catedral em 1984, no 430º aniversário da maior cidade do país. O primeiro dos grandes comícios das Diretas Já agregou de Chico Buarque a Regina Duarte para pleitear o voto popular para presidente. Moraes Moreira cantou seu “Frevo das Diretas”, com letra de Paulo Leminski: “Se a meta é a democracia/ Se a democracia é a meta/ Eleição é direta”.

Anos antes, manifestações de menor porte já haviam pisado no calo militar, ao questionar os mortos e desaparecidos durante o período e o aumento do custo de vida da população. Tudo sob guarida de dom Paulo, alinhado à progressista Teologia da Libertação.

Em 2007, um papa visitou o templo pela primeira vez. Em sua passagem pelo Brasil, Bento 16 oficializou a canonização de Frei Galvão, feito o primeiro santo nascido no Brasil, e se encontrou com bispos na Sé. Seu discurso na catedral trouxe nas entrelinhas uma inquietação com a perda de espaço do catolicismo para a concorrência evangélica e também para quem desistia da religiosidade no país.

Disse Bento: “As pessoas mais vulneráveis ao proselitismo agressivo das seitas […] e incapazes de resistir às investidas do agnosticismo, do relativismo e do laicismo são geralmente os batizados não suficientemente evangelizados, facilmente influenciáveis porque possuem uma fé fragilizada e, por vezes, confusa, vacilante e ingênua”.

Quando a catedral foi aberta, quase toda São Paulo era católica, uma realidade que não se sustenta hoje, com o avanço do evangelicalismo e do grupo que diz não seguir uma crença específica. “Nestes 70 anos, entre tantas transformações, houve uma mudança de referenciais religiosos”, afirma o cônego Helmo Faccioli, um dos sacerdotes da Sé.

Outro desafio à frente é expurgar o embate ideológico que vem enquadrando parte do clero brasileiro nas guerras culturais. Essa polarização entre esquerda e direita, segundo Faccioli, confunde ações cristãs com uma falsa afeição ao comunismo, ideia que circula entre setores ultraconservadores da comunidade católica.

Se a igreja dá de comer, é vista como caridosa. “Quando, além de dar comida, roupa e abrigo, dá também formação para que as pessoas saiam dessa situação [de pobreza], aí é rotulada de comunista.” Até dom Paulo, que construiu centros comunitários na periferia após vender um palácio onde moravam ele próprio e outros bispos, que precisava de mais de 20 funcionários para fazer a manutenção, vira simpatizante de Josef Stálin sob a ótica desses críticos.

Aí mora o perigo, diz Faccioli. “Não se vê mais com olhos da caridade, mas com olhos da maldade.” Ele lembra que a Igreja Católica nunca foi aliada dos regimes que tentaram a via comunista. “Pelo contrário, ela sofreu perseguição.” O que até hoje, ele afirma, acontece na Nicarágua de Daniel Ortega e em São Paulo, onde o padre Júlio Lancellotti virou alvo de CPI municipal por seu trabalho com parcelas vulneráveis do povo.

Rivalizar com a instituição não é prerrogativa da direita. Em 2015, a parte externa da Catedral da Sé foi pichada com frases como “tire seus rosários de meus ovários”, durante protesto contra um projeto de lei que dificultava o aborto legal em caso de estupro. Uma das organizadoras do ato disse, à época, que o vandalismo não representava “o pensamento da manifestação”, mas compreendia suas autoras porque a Igreja Católica seria “um instrumento do patriarcado”. O Vaticano é contra a interrupção da gravidez.

Outras polêmicas preencheram os 111 anos que separam a igreja aniversariante do início de sua construção, em 1913. O principal templo católico da capital paulista demorou mais de quatro décadas para ser inaugurado, e as obras só aceleraram porque havia pressa para entregá-lo a tempo da celebração dos 400 anos de São Paulo.

A delonga colaborou para uma metamorfose parcial do primeiro projeto. A arquitetura gótica que o inspirou, herdada de tempos medievais, ganhou notas nacionalistas com o passar dos anos.

A turma da Semana de Arte Moderna de 1922 foi implacável com os arroubos europeus do plano inicial. Oswald de Andrade chegou a descrevê-lo como “um dos crimes mais ridículos, e que denuncia a que sublime grau de falsa cultura e de charlatanice atingiu entre nós a mentalidade arquiepiscopal, é se estar fazendo a catedral de S. Paulo (na América do Sul, no século 20!) em estilo gótico”.

As críticas surtiram algum efeito, com mudanças pontuais na edificação. Na fachada, gárgulas de pequenos dragões deram lugar a símbolos da fauna brasileira, como um tatu, um macaco-prego e um sapo. No interior, imagens de tucano, café e guaraná.

Aportes de famílias quatrocentonas locais, como os Matarazzo, ajudaram a Arquidiocese de São Paulo a colocar a catedral de pé. Para garantir seu sustento financeiro, o espaço hoje também se abre a eventos como visitas guiadas, brunches e casamentos.

Os funkeiros Lexa e MC Guimê, hoje separados, estão entre os que escolheram a catedral para casar, numa cerimônia realizada pelo padre Fábio de Melo em 2018. Um matrimônio no local, agendado com no mínimo seis meses de antecedência, custa entre R$ 4.800 e R$ 7.500. Trocar votos nupciais na cripta é uma das opções.

O órgão original da Sé, há 22 anos sem uso, será restaurado com ajuda de patrocinadores, segundo Fernando Meli, administrador do templo. O dano maior se deu após obras emergenciais no complexo, que paralisaram as atividades por três anos e avariaram parte dos 10 mil tubos do órgão. Meli prevê a reestreia do instrumento, que já foi o maior de seu tipo no continente, para 2026.

A crise de segurança pública nos arredores da catedral também provocou estragos na frequência das missas. A situação melhorou nos últimos meses, sobretudo após uma reunião de representantes do templo com Guilherme Derrite, o secretário paulista de Segurança Pública, em que até o fechamento da catedral foi posto como alternativa à escalada da violência na região.

A reportagem passeou pela área nesta segunda-feira (21) e, além de uma base policial móvel, esbarrou com duas viaturas da Polícia Militar nos arredores e viu dois guardas da GCM (Guarda Civil Metropolitana) abordando dois jovens. Turistas andavam em bando com celulares em punho, e um homem que se apresentava como pastor evangélico preconizava que o fim dos tempos estava próximo.

Dentro da catedral, dezenas de fiéis rezavam baixinho. A comerciante Rosa Santos, 27, pedia que o marido conseguisse um emprego, enquanto uma amiga queria proteção divina para a mãe acamada por um câncer. Ao lado delas, um senhor cochilava de roncar alto.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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