SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A morte de Eduardo Coutinho, há exatos dez anos, foi uma infeliz tragédia que se opôs à própria natureza de sua obra. Esfaqueado pelo filho durante um surto psicótico, o cineasta de 80 anos deixou documentários de primeira linha, pacatos na superfície, mas interessados nas verdades miúdas do cotidiano que transformavam anônimos em personagens universais.
Com filmes sendo exibidos no Instituto Moreira Salles em São Paulo desde o ano passado, a mostra segue neste mês, com exibições dos últimos trabalhos que finalizou ”A Família de Elizabeth Teixeira” e “Sobreviventes da Galileia”, quando revisitou, em 2013, personagens de “Cabra Marcado para Morrer”, sua obra maior. Menores, lançados apenas como extras de DVD, valem para quem quer conhecer tudo já feito pelo autor de “Edifício Master”, “Santo Forte” e “O Fim e o Princípio”.
Exibição mais rara é a de “Ao Caminhar Entrevi Lampejos de Beleza”, não dirigido por Coutinho, mas por Jonas Mekas, uma longa viagem pelos diários do “papa do underground” americano, a ser exibida neste mês no IMS Paulista e no de Poços de Caldas.
Esse ensaio sentimental, apesar de bem diferente das entrevistas de Coutinho, era um de seus “filmes-faróis”, como definiu em uma coluna n’O Globo, numa lista que inclui ainda “Shoah”, “A Morte de Empédocles”, “Faces” e “Onde Começa o Inferno”.
“Filme-diário para acabar com os filmes-diário. Testamento, final do último milênio. Nada acontece. Letreiros. Piano e a voz do Mekas reportando-se ao passado das imagens. Nenhum som direto”, define Coutinho no verbete sobre o filme. “Planos de dois, cinco segundos. Câmera não para. Luz e focos pras picas. Dura quase cinco horas, acho tem que ser visto inteiro, de uma vez, se você aguentar. Tempo que passa, passou.”
Oposto na forma, o cinema de Coutinho e seus planos longos, som direto, poucas intervenções do entrevistador, guardam essa mesma sensação passageira, mas mirando uma perenidade que extrapola os limites sociais e políticos de “Cabra Marcado para Morrer”, “Peões” ou “Boca de Lixo” e se conecta à observação da palavra no jogo verdade-ficção de “Jogo de Cena”, “Moscou” ou “Um Dia na Vida”.
E, felizmente, algumas de suas obras estão disponíveis no streaming, ou no YouTube, em canais alternativos, considerando obras de lançamento mais limitado, como “Santa Marta: Duas Semanas no Morro”, lançado apenas em vídeo.
Veja abaixo uma lista de onde ver as melhores obras de Eduardo Coutinho.
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Cabra Marcado para Morrer (1984)
Disponível no Globoplay e Belas Artes à la Carte
Sua obra maior, que parte de uma ficção política interrompida pelo golpe militar de 1964 e atravessa 20 anos da carreira de Coutinho e do impacto da ditadura na vida de Elizabeth Teixeira, a morte de seu marido João Pedro e as Ligas Camponesas.
Santa Marta: Duas Semanas no Morro (1987)
No YouTube
Parte da sua fase como documentarista social, o filme antecipa a abordagem sensível de seus longas posteriores, mas em um vídeo capsular, de menos de uma hora, sobre os prazeres e problemas dos moradores do morro de Santa Marta.
O Fio da Memória (1991)
No YouTube
Menos lembrado e menos prodigioso, o filme é uma das raras abordagens diretas do autor à causa da população negra no Brasil, vendo os rastros da escravidão em histórias particulares do artista popular Gabriel Joaquim dos Santos e também de movimentos sociais do período na ocasião dos cem anos da abolição no país.
Boca de Lixo (1993)
No YouTube
Assim como “Santa Marta”, se preocupa em observar a periferia do Rio de Janeiro, dessa vez se debruçando sobre a vida nos lixões. Anos depois, Coutinho se arrependeu de ter desmentido o depoimento de uma personagem ao mostrá-la comendo restos catados do lixo. Seis anos depois, seu interesse seria a palavra e os gestos do entrevistado, e não uma suposta verdade dos fatos. A música “Sonho por Sonho” ganha novos significados no final do filme.
Santo Forte (1999)
Disponível no Globoplay e Looke
Filme definitivo para consolidar os procedimentos da sua obra a partir daqui escolher um local, mandar uma equipe para fazer pesquisas prévias e conversar com personagens sobre um determinado tema em um breve espaço de tempo. “Santo Forte” espelha a diversidade religiosa do país e seu sincretismo a partir de causos saborosos.
Babilônia 2000 (2000)
Disponível no Globoplay
Rodado por várias pessoas ao longo do dia da virada para o ano 2000 no morro da Babilônia, o diretor e sua equipe encontram figuras incríveis, como Dona Djanira, mineira que lembra de ter servido Juscelino Kubitschek na sua época de empregada doméstica, e Fátima, uma moradora que canta Janis Joplin no ponto onde foi rodado “Orfeu Negro”, de Marcel Camus, e que depois apareceria em “As Canções”, entoando Wanderléa.
Edifício Master (2002)
Disponível no Globoplay e Looke
Outra de suas obras maiores, Coutinho conheceu dezenas de moradores do edifício em Copacabana, onde chegou a morar na sua juventude. O enorme edifício oferece um mosaico bem distinto de moradores e das diferentes realidades socioeconômicas, e psicológicas, que compartilham os apartamentos conjugados. Detalhe: a montagem seguiu a ordem cronológica das entrevistas, com a exceção da de Henrique, o último nas gravações, com sua história sobre Frank Sinatra, cantando “My Way”. Mas Coutinho achou que seria um final piegas e o pôs bem no meio do filme.
Peões (2004)
Disponível no Globoplay e Looke
Enquanto João Moreira Salles rodava a campanha de Lula nas eleições de 2002 (que resultou em “Entreatos”), Coutinho faria os bastidores de José Serra. Mas não tinha qualquer afinidade com o tucano e preferiu ir atrás dos operários anônimos que lotavam os comícios de Lula na sua época de sindicalista. Filme de muita pesquisa e descoberta, repleto de silêncios que só escancaram as distâncias socioeconômicas do Brasil, colhendo um tom de esperança para o país que se anunciava na época.
O Fim e o Princípio (2006)
Disponível no Globoplay e Looke
Desta incursão de Coutinho pelo interior da Paraíba, sem qualquer pesquisa prévia ou projeto definido, nasce um filme sobre aquilo que a modernidade não tocou. Melancólico, Coutinho se aproveita da própria velhice para colher registros de uma cultura efêmera, imemorial, passada de geração em geração, com uma linguagem e geografia particular.
Jogo de Cena (2007)
Disponível no Globoplay e Looke
Filme que marca a incursão de Coutinho pelas paisagens interiores nesse caso, um teatro. Essa mudança espacial, agora incorporando também atrizes conhecidas e então anônimas, só ressalta o que o diretor já buscava desde “Santo Forte” a potência da palavra e seus desdobramentos.
Moscou (2009)
Disponível no Looke
Obra radical em sua forma, acompanhando os ensaios de uma montagem do Grupo Galpão de “As Três Irmãs” que nunca será encenada, é um experimento pouco prestigiado no panorama da sua obra, mas ainda marcante nessa última fase da sua obra.
Um Dia na Vida (2010)
Disponível no YouTube
Nunca lançado comercialmente, o filme foi exibido numa sessão quase secreta na Mostra de São Paulo na ocasião, já que é uma colagem de 19 horas de programação da TV aberta de 1º de outubro de 2009. Hipnótico para que se interessa pela linguagem, Coutinho reflete sobre a propaganda política explícitas e implícitas em programas de diversas naturezas e horários.
As Canções (2011)
Disponível no Globoplay e Looke
Coutinho adorava quando seus entrevistados cantavam. Fez um filme só com isso. Uma pessoa entra, canta uma música do coração. Conta porque é importante para si. Às vezes. Sai de cena. É um panorama do Brasil popular e a palavra cantada que o atravessa.
Últimas Conversas (2015)
Disponível no Looke
Coutinho preparava esse filme quando foi morto. Foi uma guinada temática, com Coutinho entrevistando figuras até então inéditas no seu cinema os adolescentes. Apesar da relutância pelo projeto, extrai momentos preciosos desses jovens, também da periferia, além de uma última conversa com uma criança, que vale todo o filme.
HENRIQUE ARTUNI / Folhapress