El Salvador vai às urnas para chancelar experimento autoritário de Bukele

SAN SALVADOR, EL SALVADOR (FOLHAPRESS) – Quem chega a El Salvador e por acaso não conhece Nayib Bukele é apresentado a ele logo no aeroporto da capital, San Salvador. Ou melhor, a um quadro dele e de sua mulher, Gabriela Rodríguez. O inusitado cenário que reproduz no terminal a sala de trabalho do presidente é o primeiro contato com a figura do popular líder de direita, cuja imagem é onipresente nas ruas. “El Salvador se divide em duas eras. Antes de Nayib e depois de Nayib”, afirma Mario Alas, 37, que parou com a família para tirar fotos no “espaço Bukele”.

Neste domingo (4), os salvadorenhos vão às urnas para chancelar o experimento autoritário que ele pôs em marcha no pequeno país centro-americano durante sua gestão.

De ascendência palestina, o político de 42 anos, alçado a modelo da ultradireita no continente após declarar guerra contra as violentas gangues do país e tornar o bitcoin uma moeda de curso legal, é o amplo favorito na disputa e deve ser reconduzido ao cargo, a despeito de a Constituição salvadorenha proibir a reeleição em pelo menos quatro artigos.

O sufrágio não é obrigatório, e os 6,2 milhões de eleitores aptos (incluindo os que vivem no exterior) poderão votar no líder que está no poder pela primeira vez em 80 anos. O último a violar tal regra foi o ditador Maximiliano Hernández Martínez (1882-1966) —cujo ato mais lembrado, aliás, é o massacre de pelo menos 10 mil pessoas na repressão a um levante camponês e indígena, em 1932.

No caso de Bukele, que ostenta os índices de popularidade mais altos das Américas (de 70% a 80%), a quase certa reeleição ameaça um ciclo de democratização que começou em 1992. Naquele ano, acordos de paz encerraram uma guerra civil de 12 anos e iniciaram uma tentativa de construção da democracia que opunha a FMLN (Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional), legenda das guerrilhas do conflito, e a conservadora Arena, que agrupou os opositores aos revolucionários.

Nesse período, El Salvador conseguiu manter uma democracia incompleta, segundo o cientista político da UCA (Universidade Centro-americana) Álvaro Artiga. Pleitos livres, afirma ele, foram realizados periodicamente, mas o arranjo para limitar o poder das autoridades eleitas não cumpriu seu papel. “Isso falhou em todo esse período, porque o sistema de controle que se estabeleceu foi deficiente e definitivamente incapaz de investigar funcionários de alto nível”, diz o pesquisador.

Logo antes da ascensão de Bukele, a atualmente enfraquecida FMLN vivia um período de glória —o partido chegou ao poder no ocaso da onda rosa na América Latina, quando Mauricio Funes ganhou a votação de 2009 após 20 anos de domínio da Arena no Executivo.

Na época, Funes era casado com a brasileira Vanda Pignato, que foi militante do PT nos anos 1980. Na Nicarágua desde 2016, o ex-presidente chegou a ser condenado este ano por supostamente negociar com gangues enquanto estava no poder —suspeita que recai sobre diversos políticos que passaram pela Presidência nas últimas décadas, incluindo Bukele.

Politicamente esgotado, o bipartidarismo foi interrompido em 2019, quando Bukele levou a Presidência no primeiro turno, com 53,1% dos votos, pelo Gana (Grande Aliança pela Unidade Nacional) —partido de aluguel do político antes de ele conseguir a transferência para a sua sigla, Novas Ideias.

Desde então, o salvadorenho perseguiu politicamente jornalistas e opositores até que parte deles saísse do país, promoveu uma reforma no Código Penal que, na prática, censurou livros e chegou a invadir a Assembleia com policiais e militares pela aprovação de um pacote de segurança no início de 2020.

Os atritos com os deputados acabaram no ano seguinte, quando sua sigla conseguiu sozinha dois terços dos assentos nas eleições legislativas. Ato contínuo à posse dos parlamentares, a Assembleia destituiu cinco juízes da Corte Constitucional do país, além do procurador-geral, e os substituiu por aliados.

Também em 2021, o tribunal liberaria a reeleição, mesmo sem a revogação dos artigos em contrário da Constituição. Em dezembro, Bukele e seu vice tiraram licença do cargo para se dedicar à campanha, deixando sua secretária privada e presidente de um conselho de obras municipais, Claudia Juana Rodríguez de Guevara, no poder.

Bukele se insere, assim, num quadro de líderes autoritários pelo mundo que minam os contrapesos do Estado enquanto mantêm uma fachada de institucionalidade. A despeito das estratégias típicas de ditaduras do século 20, o político tem conseguido se vender como “o presidente mais cool do mundo”, como ele mesmo se definiu. Apresenta-se como um entusiasta de novas tecnologias, alardeia uma nova era para El Salvador e usa intensamente as redes sociais.

Para Artiga, a chave da popularidade está em seu draconiano método para diminuir a violência em El Salvador. Há 22 meses, Bukele prorroga um estado de exceção que fez o país sair da lista dos mais violentos do mundo para liderar a dos que mais encarceram. Amplamente apoiada pela população, a medida virou sua vitrine de campanha apesar das denúncias de prisões de inocentes e de torturas nos centros penais.

A violência era um problema tão grande para os salvadorenhos que seu arrefecimento ofusca o mau desempenho da gestão Bukele em outras frentes. Sob seu mandato, o número de cidadãos que vivem na pobreza (com menos de US$ 2 por dia), que vinha caindo, estagnou, e aqueles que estão na extrema pobreza (menos de US$ 1,25 por dia) aumentou, na contramão da tendência da América Latina.

Em 2022, a inflação chegou a 7,32%, maior índice em 20 anos. No ano passado, caiu para 1,23% por causa do barateamento do petróleo, mas o custo da cesta básica aumenta em ritmo mais acelerado do que a média dos preços.

Nem mesmo a promessa de mais investimento estrangeiro, aposta de Bukele após a implementação do bitcoin, cumpriu-se. Por fim, a economia de El Salvador continua sendo a que menos cresce na América Central.

Apesar de tudo isso, o presidente vai para as eleições sem concorrentes. De acordo com uma pesquisa do Centro de Estudos Cidadãos da Universidade Francisco Gavidia feita na primeira semana de janeiro, a maioria dos salvadorenhos nem sequer sabe quem são seus adversários.

O segundo colocado, que tem de 2% a 5% das intenções de voto, é Manuel Flores, da FMLN, um desconhecido para 64,6% da população —taxa que ainda o faz o presidenciável que melhor se saiu nesse critério, com exceção de Bukele. Apenas 1% dos entrevistados dizem desconhecer o favorito, que, a depender do instituto de pesquisa, pode levar de 70% a 90% dos votos neste domingo.

Bukele deve ainda passar a controlar praticamente toda a Assembleia. O Executivo conseguiu aprovar uma redução do número de deputados de 84 para 60, para facilitar a obtenção de maioria. Um levantamento da UCA aponta que o novo Congresso deverá ser composto por 57 deputados do partido de Bukele, 1 do aliado Partido Democrata Cristão e 2 do direitista Arena, que seria o único resquício de oposição. Se confirmada a projeção, será a primeira vez que a dizimada esquerda salvadorenha não terá assentos no Parlamento desde 1992.

O cenário desigual é agravado pelo fato de as siglas de oposição não terem recebido nenhum centavo dos US$ 34,7 milhões previstos pela Lei dos Partidos Políticos para fazer campanha. Em novembro, o juiz do aparelhado Tribunal Superior Eleitoral, Noel Orellana, afirmou que a corte não tinha poder para obrigar a Fazenda a entregar os recursos.

“A eleição se desenrola de forma anormal, com mudanças de regras, uma autoridade inerte a todas as violações e a população muito impactada pela quantidade de propaganda governamental, enquanto a oposição não teve a oportunidade de se tornar competitiva”, diz Ruth Eleonora López, especialista em direito eleitoral da ONG de direitos humanos Cristosal.

A supressão de opositores pelo voto atenderia aos planos do primo de Bukele e presidente do Novas Ideias, Xavi Zablah. “Vamos matar até a última célula, vamos tirar esse câncer que tanto prejudicou nosso país. (…) Precisamos que vocês saiam e votem em massa para eliminá-los de uma vez por todas”, afirmou no início da campanha, em dezembro.

DANIELA ARCANJO / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS