Livro ataca Bill Gates e o ‘mito’ do bom bilionário

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que há de errado com um bilionário que dedica US$ 60 bilhões de sua fortuna para resolver a pobreza do mundo, investir em educação e pesquisar vacinas e medicamentos? Na opinião do jornalista americano Tim Schwab, muita coisa.

Para o autor de “The Bill Gates Problem: Reckoning With the Myth of the Good Billionaire” (O problema Bill Gates: acertando contas com o mito do bom bilionário), a Fundação Bill e Melinda Gates é um mero instrumento de poder do fundador da Microsoft, que usa a filantropia para ganhar influência, polir sua reputação e se aproveitar de incentivos fiscais.

Tal como John D. Rockefeller e Andrew Carnegie, os “barões ladrões” do século 19, Gates se valeu da filantropia para envernizar sua imagem, arranhada por sua falta de ética nos negócios, segundo o autor da obra, ainda não lançada no Brasil.

Após o processo antitruste contra a Microsoft em 1999, que considerou a empresa um monopólio empenhado em práticas anticompetitivas, a reputação de Gates estava na sarjeta. O bilionário era descrito como ganancioso e inescrupuloso.

Foi nessa época que Gates montou a fundação, que tem um endowment de US$ 67 bilhões —em 113 países, o PIB é menor que isso.

A mudança na cobertura jornalística foi completa: o Gates “do mal” passou a ser retratado como o maior filantropo do mundo e uma força do bem.

A instituição já desembolsou mais de US$ 72 bilhões em projetos filantrópicos. Atuou em combate ao HIV na Índia, incentivo à agricultura industrial na África, políticas de vacinação durante a pandemia de Covid, novos parâmetros educacionais nos Estados Unidos, erradicação da pólio e luta contra a malária.

Mas Schwab não compra a versão de que Gates teve uma epifania e se converteu ao bom-mocismo.

“Bill Gates não está simplesmente doando dinheiro para lutar contra doenças e aperfeiçoar a educação e a agricultura. Ele está usando sua vasta fortuna para comprar influência política e refazer o mundo de acordo com a sua visão de mundo estreita”, diz.

O autor descreve a Bill e Melinda Gates como “uma fundação com uma visão colonial retrógrada que se apoia fortemente em tecnocratas muito bem pagos em Genebra e Washington para resolver os problemas dos pobres vivendo em Kampala e Uttar Pradesh”.

Ao longo de 496 páginas, o autor investiga inúmeras iniciativas filantrópicas da fundação —e demole a imagem de Gates.

Uma das principais críticas de Schwab é a falta de transparência da fundação. Nos Estados Unidos, recursos direcionados à filantropia recebem incentivos fiscais: calcula-se que para cada dólar doado, há um benefício de 50% para o doador, em impostos não desembolsados.

No raciocínio do jornalista, trata-se de dinheiro do contribuinte e não há transparência sobre como esse dinheiro é efetivamente gasto. Nos relatórios financeiros da fundação, há apenas descrições vagas e não é possível avaliar a eficiência dos programas, afirma.

O autor do livro relata ter tentado inúmeras vezes falar com a fundação, sem resposta.

Schwab tem críticas válidas. Ele questiona, por exemplo, a iniciativa de promover sementes transgênicas e agricultura industrial na África, muito criticada por pequenos agricultores locais. Million Berlay e Bridget Mugambe, da Aliança para Soberania Alimentar na África, publicaram um artigo na revista Scientific American com o título “Bill Gates deveria parar de dizer aos africanos o tipo de agricultura de que os africanos precisam”.

O autor também ataca o programa de planejamento familiar patrocinado pela fundação em países africanos —implantes hormonais inseridos no braço das mulheres que previnem a gravidez por até cinco anos. Ele cita relatos de mulheres que não foram “autorizadas” a retirar o implante quando decidiram engravidar antes, e conta como profissionais em Uganda e Maláui tentavam forçar as mulheres a colocarem os implantes.

E Schwab responsabiliza a fundação pelo fiasco na distribuição de vacinas contra a Covid, que chegaram muito antes aos países ricos. Também acusa a aliança Gavi, iniciativa da fundação para vacinas, de levantar recursos com governos e repassá-los para as grandes farmacêuticas sem grandes descontos ou benefícios para países pobres.

A imprensa é outro alvo das diatribes do autor. Segundo ele, a mídia simplesmente bajula Gates e a fundação sem questionar a fundo suas práticas.

Ele afirma, sem mostrar provas concretas, que o fato de a instituição ser uma grande doadora de recursos para veículos de imprensa —entre eles Guardian, Der Spiegel, CNN, Financial Times, Le Monde, ProPublica e NPR— influencia na cobertura.

Muitas vezes, a má vontade do escritor com o protagonista do livro contamina a obra. Ele critica o fato de a Fundação Gates não ter achado uma solução mágica contra malária, mas desconsidera que os recursos da instituição possibilitaram a compra de mosquiteiros que salvaram milhares de vidas.

Schwab não esconde a ojeriza que sente de Gates, a quem chama de “imaturo”, “incapaz de ter amigos verdadeiros”, “sabichão arrogante”, com “complexo de Deus” e “câncer da democracia”.

A repulsa é tão grande que chega a comprometer a credibilidade do livro. Em vez de apresentar os fatos, como os resultados pouco animadores em iniciativas que foram alardeadas pela fundação, Schwab carrega nos adjetivos e no rechaço ao neoliberalismo.

A certa altura, diz que as pessoas devem estar se perguntando “como deveria alguém como Bill Gates gastar seus dólares em filantropia?”.

E aí está uma das lacunas do livro: ele não oferece uma resposta satisfatória. “Minha crença é que, se a fundação vai continuar, Bill Gates não deveria ser permitido a ter qualquer papel institucional nela”, diz, a certa altura, sugerindo que ele seja totalmente afastado e substituído por um grupo de administradores.

Questionar unanimidades é sempre saudável. Mas as soluções propostas por Schwab são pouco realistas e partem do pressuposto de que os bilionários não deveriam existir.

“Quando permitimos que uma pessoa —qualquer pessoa, não importa quão benevolente ou bem intencionada— adquira essa riqueza extrema, estamos dando a essa pessoa um poder extremo. A pergunta, então, não é como o dinheiro de Gates poderia ser mais bem gasto, mas por que nós permitimos que alguém tenha essa quantidade de dinheiro e poder.”

O problema é que a desigualdade de renda é uma realidade, e Gates —e outros bilionários— existe. Então, o que é melhor: um bilionário como Elon Musk, que doa uma parte minúscula de sua fortuna, ou Bill Gates?

Para Schwab, não há possibilidade de redenção. “Precisamos considerar questões existenciais sobre a capacidade de um bilionário —qualquer bilionário— de ajudar no progresso social através da filantropia.”

THE BILL GATES PROBLEM: RECKONING WITH THE MYTH OF THE GOOD BILLIONAIRE

– Preço US$ 19,99 (496 págs. – importado)

– Autoria Tim Schwab

– Editora Holt, Henry & Company, Inc.

PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS