SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Quando era adolescente, a corrida em família no Brasil era para chegar antes das maquininhas de remarcar preços”, lembra a carioca Gabriela Casé, 48, moradora de Buenos Aires desde 2018. “Na Argentina, a gente sente que os preços aumentam. Não é todo dia, e quem tem acesso a cartão de crédito ainda consegue se planejar um pouco melhor, dividir coisas mais caras.”
Casé, assim como outros brasileiros que viveram a inflação descontrolada nos anos pré-Plano Real e agora vivem o governo de Javier Milei, percebe semelhanças e diferenças entre os dois países.
O impacto da inflação no cotidiano varia de acordo com o tipo de situação profissional, segundo a atriz, que na infância foi uma das Narizinhos na primeira versão do “Sítio do Picapau Amarelo”, da TV Globo.
Os imigrantes que trabalham na Argentina ganhando em outra moeda sobretudo em dólar, mas também em real têm uma espécie de amortecedor, assim como os argentinos com economias em dólar. Já aqueles que ganham em pesos estão desprotegidos e sofrem mais com a alta de preços, conta.
“Meu filho maior, que é educador físico e ganha em pesos, me contou que não conseguiu chegar ao fim do mês passado, e não por ter gastado além do que costuma. O salário em pesos não consegue acompanhar os preços”, diz ela, que é dona do canal de YouTube Viver em Buenos Aires, com 55 mil inscritos e onde dá dicas para brasileiros que pensam em se mudar para o país vizinho.
“O aluguel é a despesa que mais pesa no orçamento e quem já tem um contrato está protegido, mas quem está assinando agora encontra ofertas em dólar e algumas em peso e precisa ficar atento aos reajustes”, diz. “Mas sempre repito que Buenos Aires se sobrepõe às crises, ainda é um lugar incrível de morar e pode ser uma ótima opção para alguns brasileiros.”
A situação econômica do país causa preocupação. A taxa de inflação na Argentina passou de 211% em 2023, com o IPC (Índice de Preços ao Consumidor) atingindo o nível mais alto desde o início dos anos 1990 e colocando a inflação do país como a maior da América Latina no ano passado. Em dezembro, a taxa mensal foi de 25,5%.
Os segmentos com as maiores altas mensais foram os de bens e serviços (32,7%), saúde (32,6%), transporte (31,7%) e equipamentos para a manutenção do lar (30,7%), segundo o Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos).
O ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil Welber Barral, 57, morou na capital argentina em 2023 e acompanhou parte dessa escalada.
“Na época do Plano Cruzado (1986) eu já trabalhava. A sensação é um pouco de estar no Brasil de 30 anos atrás. Reajuste de preços semanalmente, intervencionismo estatal muito grande e ineficiência provocada pela burocracia, mesmo na atuação privada. As empresas têm dificuldade para cumprir requisitos e responder às demandas do Estado.”
Para ele, porém, a Argentina hoje tem traços mais positivos do que o Brasil de 30 anos atrás. “É uma sociedade muito mais segura, com um senso de comunidade muito grande e respeito aos mais velhos, com uma educação melhor.”
Há menos de dois meses, Javier Milei assumiu o governo esperando enfrentar a inflação com base em dois grandes projetos: um megadecreto com mais de 300 mudanças em diversas áreas e a chamada “lei ônibus”, com efeito em vários setores, incluindo uma reforma política.
Ao chegar à Casa Rosada, ele falou no risco de uma hiperinflação, caso suas medidas não fossem aprovadas. Mas sem força no Congresso, o governo tem sido obrigado a negociar trechos da lei e viu o capítulo de reforma trabalhista do decreto de urgência ser freado mais de uma vez pela Justiça.
Um diplomata brasileiro que vive no país desde dezembro diz que, assim como no Brasil de antes, as famílias argentinas mais pobres, que não têm acesso a outras ferramentas de proteção à inflação e correm ao supermercado logo que recebem seus salários para transformar rapidamente os pesos em comida.
Ele também diz acreditar que, apesar da insatisfação da população em relação ao aumento de preços, ainda parece haver um sentimento de trégua em relação ao novo governo.
Ainda assim, Milei enfrentou uma greve geral organizada por líderes sindicais no último dia 24 de janeiro. O próprio presidente prometeu no fim do ano que os próximos meses seriam duros.
Segundo Guillermo Oglietti, subdiretor do Celag (Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica), ao assumir Milei fez uma “conta esotérica” para dizer que havia uma hiperinflação em curso na Argentina, anualizando a taxa de inflação da última semana do governo Alberto Fernández.
“Foi pura propaganda para justificar seu plano de privatizações e desorganização da economia”, diz o economista, que vê a inflação acelerada para entre 20% e 30% mensais por conta das medidas tomadas pelo presidente.
“Não estamos vivendo uma hiperinflação, pois ainda que o gasto público de dezembro tenha crescido a um nível recorde, isso não vai continuar em janeiro e ainda temos a depressão do consumo das famílias. A queda do consumo funciona como uma âncora contra a hiperinflação, embora não consiga evitar a inflação acelerada que estamos vivendo”, diz Oglietti.
Enquanto isso, os noticiários dedicam grande parte do dia a relatar a perda do poder aquisitivo dos argentinos. Mostram cenas de supermercados, açougues e farmácias com consumidores desorientados tentando acompanhar os aumentos, e encontrando grandes diferenças nos preços de todo tipo de produto, de bolas de praia a caixas de leite.
O paranaense Rogério Antunes, 60, também perdeu a referência de preços no supermercado. Ele, que vive na fronteiriça província de Misiones, repete lá um costume que tinha no início da década de 90 no Brasil: não compra nada sem ir a mais de um estabelecimento para comparar preços.
“Já encontrei diferença de até 100% no quilo do tomate ou a mesma marca de suco sendo vendida pelo triplo do preço em lojas diferentes de uma mesma rede de supermercado.”
Oglietti lembra que a corrida ao supermercado, sobretudo nas classes mais pobres, aconteceu nos anos 1980 e também acontece com Milei, com as famílias antecipando a compra de todos os bens que conseguem para trocarem os pesos, que derretem, por alimentos e bens duráveis.
Alguns produtos tiveram grandes aumentos nos primeiros dias do novo governo e depois foram sendo corrigidos, por falta de compradores, diz ele.
“A carne é um exemplo, mas quando as cadeias exportadoras se organizarem, o produto atingirá preços internacionais, gerando uma nova fonte de inflação e um dando golpe direto no bolso da classe média baixa.”
VIZINHOS COMPARTILHAM BATALHA HISTÓRICA CONTRA A INFLAÇÃO
Brasil e Argentina têm em comum uma história acidentada de combate à inflação. Em outubro, reportagem da Folha de S.Paulo mostrou que eles foram os países da região com mais tentativas de estabilização da economia nos últimos 50 anos, segundo um estudo do Conicet (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas, na sigla em espanhol).
De acordo com os critérios dos pesquisadores, foram 12 planos econômicos lançados na Argentina, na tentativa de domar a inflação sete deles fracassaram em menos de dois anos, quatro tiveram sucesso temporário e apenas o Plano Cavallo em 1991, que fez cada peso argentino valer um dólar, funcionou por um período mais longo.
Só que, sem um plano de saída, a conversibilidade se mostraria uma armadilha na década seguinte, terminando em desvalorização, limitação de saques, renúncia do presidente Fernando de la Rúa e protestos de rua que acabaram com quase 40 mortos.
A crise econômica na década de 1980 foi tão grave, que o primeiro presidente após a volta da democracia, Raúl Alfonsín, teve de antecipar o fim do seu mandato após o fracasso de planos de estabilização, como o Plano Austral, e a inflação ter chegado a 4.923% em dezembro de 1989.
Do outro lado da fronteira, no Brasil, termos como “tablitas de reajuste”, “congelamento de preços”, “gatilho” e “cortes de zeros” tornaram-se comuns para a população nas décadas de 1980 e 1990, com as diversas medidas tomadas nos planos econômicos que antecederam o Plano Real.
De acordo com o Banco Central, a inflação no Brasil em 12 meses bateu em 4.922% às vésperas do lançamento da atual moeda, em junho de 1994.
Para o economista argentino Martín Rapetti, um dos autores do estudo do Conicet, a persistência da inflação na América Latina se tornou um problema crônico em alguns países, se mantendo elevada por vários anos ou décadas e levando os agentes econômicos a se adaptarem a essa situação.
Em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura em novembro, o economista do FGV-Ibre (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas) Fabio Giambiagi alertou que, ainda que Argentina não viva uma hiperinflação, o mercado subestima o problema inflacionário do país.
Ele também apontou não identificar na equipe econômica de Milei nomes experientes como os que estiveram à frente de planos de estabilização econômica tanto na lá quanto no Brasil.
DOUGLAS GAVRAS / Folhapress