SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O pacote de socorro que o governo está discutindo com as companhias aéreas não vai solucionar os problemas estruturais que encarecem a passagem no Brasil se o setor não tiver uma redução nos custos operacionais, como o combustível dilema a ser resolvido com a Petrobras.
A avaliação é de Jerome Cadier, presidente da Latam. Ele aponta ainda a judicialização como outro tema que pesa mais nas contas das companhias brasileiras do que na média mundial e poderia ser combatido sem ajuda do Tesouro.
Por ora, o esforço para baratear a passagem exige aumento da oferta de assentos no mercado, que enfrenta escassez de aviões. Daí o interesse da Latam pelos Boeings da Gol, que entrou em recuperação judicial nos EUA e atravessa negociação com arrendadores de aeronaves.
“A Gol está com vários aviões parados. Quem sabe a gente pode colocá-los para voar. O que importa para o passageiro é ter avião para voar. Se está parado, não ajuda a ter oferta e baixar a tarifa”, diz.
A ideia, ressalva, é estimular os preços de entrada, como os bilhetes do Voa Brasil, programa de passagens a R$ 200 para aposentados e alunos do Prouni. O trecho comprado em cima da hora por viajantes corporativos vai permanecer mais alto.
“Eu não vou dar desconto para dono de empresa que precisa voar para fechar um negócio. Ele pode pagar mais. E me ajuda a oferecer uma passagem a R$ 200 ou R$ 300. Sem ele, essa passagem não existe”, diz Cadier.
PERGUNTA – Como está a negociação com o governo para o pacote de socorro às aéreas? Quanto tempo vai levar?
JEROME CARDIER – Há vários meses a gente vem falando de três temas: preço do combustível, excesso de judicialização no Brasil e crédito. Com a entrada da Gol em chapter 11 [recuperação judicial], o nível de urgência, talvez, do governo aumentou.
Não sei com que velocidade conseguiremos mover esses temas. Se fosse simples, acho que o governo já teria feito alguma movimentação. Nosso principal problema é custo. A gente ouve reclamação de preço de passagens, mas mesmo com os preços altos, o setor não está saudável. O tema é custo. Se não endereçarmos isso, vamos continuar vivendo crises recorrentes.
P. – O ministro de Portos e Aeroportos, Silvio Costa Filho, falou que o fundo de socorro às aéreas pode chegar a R$ 6 bilhões? Como isso ajudaria o setor?
JC – É óbvio que ajuda, mas não vai resolver os problemas estruturais, de custo de operação. É custo alto que eleva passagem. Não é simplesmente ter acesso a crédito que vai imediatamente baixar preço da passagem. O que gera impacto direto é baixar o combustível e reduzir a judicialização.
P. – Como está a perspectiva quanto ao QAV (querosene de aviação)?
JC – Temos um dilema. A Petrobras é aberta em Bolsa e tem que precificar da melhor forma para a empresa. Se concluirmos que o combustível precisa baixar, tem de ter uma justificativa clara, para a Petrobras não ficar em situação complexa em relação ao mercado. A fórmula de cálculo ainda não está clara. Em alguns momentos, a Petrobras cobra acima do preço de importação, e em outros, abaixo.
Outra coisa: dizemos que não há monopólio. Mas não há mesmo? Então por que ninguém está comprando de outra companhia que não a Petrobras? Eu acho que não temos um monopólio escrito em lei, mas temos uma dificuldade em trazer outras empresas para competir com a Petrobras no fornecimento de QAV para as companhias brasileiras.
P. – Dados da Abear, associação do setor, mostram que a judicialização representa 1% do custo do setor. Isso realmente é grande ou é só argumentação do setor para pedir mudança regulatória?
JC – Tem um custo direto, em que a empresa é condenada na Justiça e tem que pagar em média R$ 5.000 de indenização. Neste ano, a Latam vai gastar mais de R$ 350 milhões e transporta um pouco mais de 30 milhões de passageiros. Ou seja, todo passageiro está gastando R$ 10 à toa. Se a tarifa média for R$ 600, é mais do que 1%. E tem o custo indireto, porque reduz eficiência e eleva o custo total de operação.
P. – O governo passado teve programa do BNDES na pandemia, mas não aprovou nenhuma operação. Por que daria certo agora?
JC – Foi oferecido um apoio pelo BNDES naquela época. Não deu certo porque o custo do empréstimo foi proibitivo, quase mais caro do que se a gente fosse tomar emprestado no mercado. Por isso a Latam decidiu fazer a reestruturação. Foi até, eu digo hoje, muito ruim para o acionista da Latam na época, porque o acionista sofreu durante a reestruturação. Perdeu tudo, mas por outro lado, a companhia se reestruturou no momento certo e saiu mais forte.
P. – O ex-ministro Paulo Guedes dizia que não ia dar “molezinha” para as aéreas. O que mudou em relação à equipe do governo Lula?
JC – Eu vejo a equipe tocando em alguns temas que, talvez, no governo anterior, a gente não teve oportunidade de tocar, que é o custo de operação no Brasil. Não adianta lançar um Voa Brasil sem trazer medida de redução de custo.
Eu vejo o governo preocupado com isso agora, até em função do que está acontecendo. Não adianta lançar um Voa Brasil para tentar baixar a tarifa, quando uma das empresas está em chapter 11, o que mostra que o problema é o custo de operação. Não é necessariamente financiamento ou preço.
P. – Qual é a correlação entre o esforço do setor para baixar preço e a negociação do pacote?
JC – É o governo dando subsídio ao consumidor para compra de passagem por meio de flexibilização de dívida tributária e regulatória? Temos de analisar as coisas separadamente. O Voa Brasil é um programa que visa dar visibilidade a passagens que são vendidas a preços mais acessíveis para determinados públicos. O governo não está financiando a passagem para ninguém, por enquanto. Não está dando incentivo para as pessoas que vão comprar no Voa Brasil. Ele só está aglutinando passagens a menos de R$ 200, que já estão aí, teoricamente, e que as companhias vendem, de vez em quando, mas vão concentrar naqueles públicos e rotas. Não tem dinheiro público no Voa Brasil.
Depois, tem a discussão sobre como se resolve o problema de longo prazo do setor, que são os custos operacionais, preço de combustível. Tem de achar uma solução para isso, seja Petrobras, distribuidoras, incentivo, mais concorrência ou tudo junto. Ainda não temos esse desenho. Estamos interagindo com o ministério e a Petrobras para tentar encontrar um caminho.
Mas os outros custos, talvez não saiam do Tesouro. A redução da judicialização é parar de gastar dinheiro com indenizações que não fazem sentido globalmente.
P. – Recentemente as companhias anunciaram, ao lado do ministro, um esforço para baixar preços. A Latam só prometeu elevar oferta de assentos, mas Gol e Azul anunciaram cotas de passagens com tetos de preços, porém, acima da média praticada em 2023. Quer dizer que vai subir mais? O consumidor pode confiar nesse esforço?
JC – Não vou emitir julgamento sobre o que eles propuseram. O preço baixa com mais oferta. Se não tem oferta e o custo é alto, o preço sobe. Por isso a Latam está fazendo o trabalho de crescer no Brasil. Nossa participação de mercado, que era próxima de 30% subiu para 37% ou 38%. Estou trazendo avião para voar no Brasil. Isso vai baixar preço.
A Latam se comprometeu a elevar a capacidade, dobrando o crescimento que a gente previa para 2024. De 3% a 4%, eu falei em [subir para] 7% a 8%, e talvez mais. É por isso que eu estou louco buscando avião, faz tempo. Quero ganhar mercado. A nossa proposta é anunciar preços abaixo de R$ 200 toda semana. Estou estimulando preço de entrada, de quem tem sensibilidade a preço, e não preço médio.
P. – Tem solução para a ponte aérea comprada em cima da hora, que está muito cara?
JC – No mundo todo, o preço varia conforme a antecipação. Eu preciso de passageiros que compram de última hora, porque eles estão dispostos a viajar por um preço mais alto. É quem viaja a negócios. Se eu baixar os preços mais altos, vou ter de subir os preços mais baixos, porque o meu preço médio precisa estar em patamar saudável.
Se eu vender menos passagens a R$ 1.800, tenho de vender menos a R$ 200. Desde 2017, a Latam tem um programa [com descontos] para quem precisa viajar de última hora por motivos de doença. Mas eu não vou dar desconto para dono de empresa que precisa voar para fechar um negócio. Ele pode pagar mais. E me ajuda a oferecer uma passagem a R$ 200 ou R$ 300. Sem ele, essa passagem não existe.
P. – A passagem comprada em cima da hora está mais cara do que historicamente?
JC – A curva sobe quase por igual. O problema é que o preço mais alto chama a atenção. Ninguém posta no Instagram que viajou por R$ 199. Quem posta é quem viajou por R$ 1.900. Esse patamar acima de R$ 1.500 representa 6% das pessoas. Mas eles fazem um barulho tremendo.
P. – O sr. disse estar louco para buscar avião. Uma das alternativas é comprar avião da Gol, mas se fizer isso, a oferta de assentos no Brasil não permanece igual? Qual é vantagem para o passageiro?
JC – Quando a gente fez aquele compromisso no fim do ano passado [de elevar oferta] para 2024, foi olhando o que a gente podia fazer para buscar avião. Estou trazendo avião de outros países e tentando aproveitar o espaço que existe no mercado brasileiro.
Estou procurando avião faz tempo, mas há várias coisas acontecendo. Tem um problema crônico. Motores novos da Pratt Whitney [fornecedor de motor] estão durando menos, precisando reparar mais cedo. Isso reduz a quantidade de avião disponível. Os fabricantes atrasam as entregas. Tem um desafio para continuar crescendo. Eu ia devolver os Airbus A319 esse ano para trazer os A320 e A321 mais modernos, mas eles estão atrasados. Desisti de devolver. Estou buscando alternativas para continuar colocando capacidade. Qualquer avião é alternativa.
P. – Inclusive os Boeings da Gol, apesar de vocês terem frota de Airbus? Funcionaria para vocês?
JC – Eu prefiro Airbus porque tenho toda a minha organização preparada para isso. Mas entre ter Airbus e não ter nenhum outro avião, obviamente, os Boeings são uma opção. Não estamos buscando especificamente na Gol. A Gol está com vários aviões parados. Quem sabe a gente pode colocá-los para voar. O que importa para o passageiro é ter avião para voar. Se está parado, não ajuda a ter oferta e baixar a tarifa. Queremos colocar oferta e nos comprometer com crescimento no Brasil como temos feito nos últimos três anos.
P. – Nas recuperações judiciais da Avianca Brasil e da Latam, houve tentativas dos outros concorrentes de comprar ativos, gerando tensão e risco de atrapalhar os processos. Essa demonstração de interesse de vocês pelos Boeings da Gol pode atrapalhar o processo da concorrente e prejudicar um setor já tão abalado?
JC – No fim de 2023 nós já manifestávamos de forma muito transparente a necessidade de buscar mais aviões. Era público e notório. Já estávamos buscando isso muito antes do chapter 11 da Gol. Se eu tivesse forçado ou incentivado algo para fazer a Gol entrar em chapter 11, aí se poderia falar que existe alguma intenção. A partir do momento que soubemos que existiam aviões parados e poderíamos ter acesso a essa capacidade, estamos buscando essa como qualquer outra. Então, eu não acho que pode piorar, porque é parte do jogo.
Nada muda, eles continuam negociando. Se os lessores [arrendadores de aeronaves] decidirem tomar os aviões e colocar em Singapura, Europa, Brasil, vai ser uma decisão deles, seguindo os preceitos. Estamos tranquilos, manifestamos antes o interesse, está na mão dos lessores conversando com a Gol. Temos interesse em crescer, essa é a mensagem que a gente sustenta. A situação do atraso dos motores e da Airbus nos tem feito buscar qualquer alternativa no mercado.
P. – Essa sua manifestação de interesse pelos Boeings fortalece o lessor na negociação com a Gol, não?
JC – Eu acho que ela ajuda a Latam a ter mais espaço e continuar crescendo no mercado brasileiro. E é um benefício para o passageiro, que mais cedo vai ter os aviões, seja pela Gol, seja pela Latam, voando aqui no Brasil. Eu não acho que tenha um impacto direto. Assim como a Azul manifestou várias coisas durante o nosso chapter 11, ela estava no direito de manifestar o que quisesse. E no caso da Avianca, o que houve foi uma disputa pelos ativos. A Latam ficou com 13 aviões e colocou para voar já em 2019. A disputa foi mais pelo espaço de Congonhas, com toda aquela briga, mas os aviões possibilitaram crescimento.
JOANA CUNHA / Folhapress